Requisição de prontuário/relatório médico pela autoridade policial x sigilo médico: Lei n 12.830, de 20/06/2013

Lamentavelmente, problema prático e rotineiro na atividade exercida pelo delegado de polícia é a escusa pelos hospitais em fornecer prontuário de atendimento ou relatório médico quando requisitado alegando ser necessária autorização judicial por se tratar de sigilo médico, em flagrante desobediência ao artigo 2º, § 2º, da  Lei Federal 12.830/2013  e  ao artigo 3º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece).

A justificativa para negação, vale-se do artigo 5º, inciso X, da Lei Maior, Resolução do Conselho Federal  de Medicina nº 1605/2000, artigos 153 e 154, ambos do Código Penal Brasileiro, de decisões judiciais anteriores a Lei Federal 12.830, de 20 de junho de 2013 e de três ações diretas de inconstitucionalidade da mencionada Lei (ADINs nºs 5043, 5059 e 5073).

O artigo 5º, inciso X, da Constituição Cidadã dispõe: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.

Como é cediço pelos operadores do direito, o inquérito policial é um procedimento administrativo sigiloso (artigo 20 do C.P.P.), escrito, produzido pelo órgão de polícia judiciária, presidido pelo delegado de polícia, com o fito de buscar a tipicidade do fato, a existência ou não de causas excludentes de ilicitude e a culpabilidade do autor do delito. No desempenho de seu mister apura as circunstâncias e a motivação do delito, em observância ao disposto no artigo 6º e seus incisos, do Estatuto Processual Penal, visando resguardar o Estado Democrático de Direito e a dignidade da pessoa humana.

Ponderamos que, semelhante aos médicos, o delegado de polícia, lida com bens jurídicos relevantes, tais como: vida, liberdade, integridade física ou psicológica, patrimônio, saúde pública (drogas ilícitas) etc. Muitas vezes tem que decidir no calor dos fatos e precisa de elementos (relatório médico), depoimentos de testemunhas, declarações de vítimas etc, para não prejudicar a honra, imagem, patrimônio e liberdades das pessoas.

O inquérito é um complexo de atos administrativos que se submete aos princípios basilares da Administração  Pública estampados no artigo 37, caput, da Constituição Federal, quais sejam: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Com exceção do princípio da publicidade, o inquérito deve observar os demais sob pena de caracterizar ato de improbidade administrativa, nos termos do artigo 11, incisos I, II e III, da Lei 8.429/1992.

Sinale-se que, assim como os médicos, advogados, psicólogos, padre etc, os delegados e seus agentes, por imposição legal (artigo 144, inciso IV, § 4º, da C.F., artigo 20, do C.P.P.,  artigo 325 do C.P.B., artigo 62 da L.C. 207/1979 e  artigo 3° da Portaria DGP-18/1997) e em decorrência da própria natureza do serviço executado devem manter o sigilo de seus trabalhos para a obtenção de um desfecho satisfatório, senão de que adiantaria trabalhar sem o necessário sigilo exigido na investigação, expondo a intimidade, honra e imagem de um investigado?

Dessa forma, não assiste razão à invocação da referida norma constitucional para obstaculizar o trabalho da Polícia Judiciária.

A Resolução do Conselho Federal  de Medicina nº 1605/2000 proíbe o fornecimento do conteúdo de prontuário médico sem o consentimento do paciente ou requisição judicial,  escudando-se nos artigos 153 e 154,  do Código Penal Brasileiro.

Inicialmente sabemos que “Resolução” é um ato normativo subordinado a lei e a Constituição Federal. Dessa forma, a referida Resolução não pode contrariar a Constituição Federal e as Leis Infranconstitucionais sob pena de subverter a ordem jurídica vigente e cada um dar a interpretação que melhor lhe aprouver em flagrante ofensa ao Estado Democrático de Direito.

Conforme entendimento doutrinário majoritário, a interpretação  é o método pelo qual se procura extrair o significado de uma determinada norma. Na interpretação das leis parte-se da Constituição  em relação às demais normas do ordenamento jurídico. Conforme leciona Canotilho (2003: 1223-1226): “no Princípio da Concordância Prática ou da Harmonização,  não há hierarquia entre os bens supremos constitucionais e, diante de aparente conflito, deve-se procurar a prevalência de um, sem com isso, aniquilar o outro. É pertinente, portanto, lembrar que não há hierarquia entre as normas constitucionais, as quais devem sempre ser interpretadas em conjunto, pela combinação e coordenação dos bens jurídicos em conflito”.

Estabelece o art. 102 do Código de Ética Médica quanto ao sigilo relacionado ao segredo médico: “Art. 102 – Revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por justa causa, dever legal ou autorização expressa do paciente”.

Tal dispositivo estabelece que o sigilo relacionado ao atendimento do paciente deve ser preservado, entretanto, há três hipóteses em que não se poderá alega-lo: justa causa; dever legal ou autorização expressa do paciente.

O que nos chama a atenção ao dispositivo colacionado é o que vem a ser “justa causa” para o Código de Ética Médica. De acordo com o disposto na página oficial do CRM-SP, são exemplos de “justa causa”:

“a) Para evitar casamento de portador de defeito físico irremediável ou moléstia grave e transmissível por contágio ou herança, capaz de por em risco a saúde do futuro cônjuge ou de sua descendência, casos suscetíveis de motivar anulação de casamento, em que o médico esgotará, primeiro, todos os meios idôneos para evitar a quebra do sigilo;

b) Crimes de ação pública incondicionada quando solicitado por autoridade judicial ou policial, desde que estas, preliminarmente, declarem tratar-se desse tipo de crime, não dependendo de representação e que não exponha o paciente a procedimento criminal;

c) Defender interesse legítimo próprio ou de terceiros”

(http://www.cremesp.org.br/?siteAcao=Publicacoes&acao=detalhes_capitulos&cod_capitulo=57 – acesso em 17.09.2013).

Os comentários sobre o sigilo médico vão além:

“Com relação ao pedido de cópia do prontuário pelas Autoridades Policiais (delegados, p.ex.) e/ou Judiciárias (promotores ou juízes), vale tecer alguns esclarecimentos sobre segredo médico”.

O segredo médico é uma espécie do segredo profissional, ou seja, resulta das confidências que são feitas ao médico pelos seus pacientes, em virtude da prestação de serviço que lhes é destinada. O segredo médico compreende, então, confidências relatadas ao profissional, bem como as percebidas no decorrer do tratamento e, ainda, aquelas descobertas e que o paciente não tem intenção de informar. Desta forma, o segredo médico é, penal (artigo 154 do Código Penal) e eticamente, protegido (artigo 102 e seguintes do Código de Ética Médica), na medida em que a intimidade do paciente deve ser preservada.

Entretanto, ocorrendo as hipóteses de “justa causa” (circunstâncias que afastam a ilicitude do ato), “dever legal” (dever previsto em lei, decreto, etc.) ou autorização expressa do paciente, o profissional estará liberado do segredo médico. Assim, com as exceções feitas acima, aquele que revelar as confidências recebidas em razão de seu exercício profissional deverá ser punido”(http://www.cremesp.org.br/?siteAcao=Publicacoes&acao=detalhes_capitulos&cod_capitulo=57 – acesso em 17.09.2013)”.

Do ponto de vista jurisprudencial, merece respaldo nosso entendimento no sentido de que o sigilo médico não é absoluto, como pode ser visto nas decisões abaixo transcritas:

“ESTABELECIMENTO HOSPITALAR. NEGLIGENCIA MÉDICA. ENTREGA DE DOCUMENTOS. ILEGALIDADE DA RECUSA (…) VIOLAÇÃO DE SEGREDO PROFISSIONAL. INOCORRÊNCIA. NECESSIDADE DO DOCUMENTO PARA ANALISE DO PROCEDIMENTO MÉDICO ANTES, DURANTE E DEPOIS DA CIRURGIA FATAL. ATO LEGÍTIMO DO DELEGADO DE POLÍCIA. DISPENSABILIDADE DE ORDEM JUDICIAL (…) A RESOLUÇÃO DO CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, INVOCADA PARA JUSTIFICAR A RECUSA DA PACIENTE NO CUMPRIMENTO DA REQUISIÇÃO POLICIAL, ENCERRA INCONCEBÍVEL ABSURDO QUANDO NOS “CONSIDERANDOS” AFIRMA QUE “É ILEGAL A REQUISIÇÃO JUDICIAL DE DOCUMENTOS MÉDICOS QUANDO HÁ OUTROS MEIOS DE OBTENÇÃO DE INFORMAÇÃO NECESSÁRIA COMO PROVA”. Grifo nosso -, pois em se tratando de investigação destinada a apuração de crime, cuja ação penal é publica incondicionada, compete a autoridade reunir todas as provas para averiguar, ao final, qual é a necessária ou não ao convencimento do julgador. A par disso, a violação de segredo profissional só constituiu crime quando a revelação é feita sem justa causa por quem tem ciência dele em razão da função, ministério, ofício ou profissão, sendo ela capaz de produzir dano a outrem, e mesmo assim a adequação típica exige a presença do dolo, o que não se verifica no fornecimento de prontuário médico de vítima de homicídio em cumprimento de requisição da autoridade competente para fazê-lo, sendo oportuno lembrar que O CRIME DE VIOLAÇÃO DO SEGREDO PROFISSIONAL SOMENTE SE PROCEDE MEDIANTE REPRESENTAÇÃO, DIREITO QUE PERTENCE AO INTERESSADO NA MANUTENÇÃO DO SEGREDO E QUE SE EXTINGUE COM A MORTE, NÃO SE TRANSMITINDO AOS HERDEIROS (…)”[1].(grifo nosso)

“MANDADO DE SEGURANÇA n° 488.137-6 – TJ/PR- INQUÉRITO POLICIAL – MORTE DE PACIENTE – REQUISIÇÃO DE PRONTUÁRIO MÉDICO – RECUSA DESCABIDA DO DIRETOR DO HOSPITAL – SEGURANÇA DENEGADA. O sigilo profissional não é absoluto, contém exceções, conforme se depreende da leitura dos respectivos dispositivos do Código de Ética. Daí porque se revela descabida a recusa em atender a requisição do prontuário médico e documentos feita pelo juízo, em atendimento à cota ministerial, visando apurar possível prática de crime contra a vida diante da morte da paciente que fora submetida a cirurgia de lipoaspiração”.

 

“SIGILO MEDICO/PROFISSIONAL. REQUISICAO DE PRONTUARIOS DE PACIENTES PELO MINISTERIO PUBLICO. ATO QUE TEM AMPARO NA LF-8625 DE 1993 ART-26 INC-II PAR-2, E NA CIRCUNSTANCIA DE QUE O SIGILO OBJETIVA O RESGUARDO DE INTERESSES INDIVIDUAIS, NAO PODENDO, TODAVIA SOBREPOR-SE A OUTROS, DE MAIOR MAGNITUDE. SEGURANCA DENEGADA. (Mandado de Segurança Nº 595198409, Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Vellinho de Lacerda, Julgado em 07/02/1996)”.

 

HABEAS CORPUS PREVENTIVO. DETERMINAÇÃO JUDICIAL PARA FORNECIMENTO DE PRONTUÁRIO MÉDICO. INCOMPETÊNCIA DA AUTORIDADE NÃO CONFIGURADA. ATO DE MERA SOLICITAÇÃO. ALEGAÇÃO DE VIOLAÇÃO DE SIGILO PREVISTO NO CÓDIGO DE ÉTICA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO CARACTERIZADO. SIGILO QUE MILITA EM FAVOR DA VÍTIMA/CLIENTE, E NÃO DO PROFISSIONAL DA MEDICINA. Ordem denegada[2]. (grifo nosso)”.

 

Corroborando, ainda há que se observar que, as proposituras das citadas Ações Diretas de Inconstitucionalidade em face da Lei 12.830/2013, como é sabido, por si só, não conduz à suspensão de sua eficácia e exigência de sua observância,  conforme interpretação extraída do artigo 102, § 2º, da Bíblia Política c.c. artigos 10 a 12 da Lei 9.868/1.999.

Nesse sentido, resta demonstrado que não há possibilidade de o responsável pelo hospital negar a autoridade policial prontuário de atendimento médico de paciente quando requisitado para auxiliar nas investigações realizadas em inquérito policial.

Praticado um crime, nasce para o Estado o poder-dever de punir o agente delituoso nos rigores da lei penal, de modo que o exercício do “jus puniendi” se dá pela persecução criminal. Por sua vez, a persecução criminal se dá em duas fases: fase investigativa e fase processual.

Regra geral, a fase investigativa se dá por meio da instauração de um inquérito policial, procedimento obrigatório e indispensável (majoritário o entendimento pela sua dispensabilidade) que visa a busca da verdade real dos fatos, sendo presidido pela Autoridade Policial.

Estabelece o art. 144 da Constituição Federal, § 4º, que:

“A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: (…)

IV – polícias civis;

§ “4º – às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvadas a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares”.

Diante da atribuição conferida ao delegado de polícia pela Constituição Federal, cabe-lhe expedir atos necessários à investigação, observando os direitos e garantias fundamentais do ser humano.

De ressaltar que o art. 6° do Diploma Processual Penal  estabelece, em rol não exaustivo, diversas diligências a serem realizadas pela Autoridade Policial quando do conhecimento de um fato delituoso. Neste sentido, a Lei 12.830/13, em seu art. 2°, § 2° estabeleceu que: “durante a investigação criminal, cabe ao delegado de polícia a requisição de perícia, informações, documentos e dados que interessem à apuração dos fatos”.

Ao conferir esse poder de Requisição ao delegado de Polícia buscou o legislador dotar a Autoridade Policial de poderes necessários para fazer a coleta das provas de forma mais célere, facilitando e tornando mais ágil à apuração do crime, podendo requisitar a particulares, agentes públicos e entes estatais o auxilio para a instrumentalização das provas, dando os meios necessários para que seja alcançado o fim do Inquérito Policial.

O verbo descrito na lei (“requisição”) implica fazer obrigar aos requisitados o dever de atender de forma rápida e adequada, fazendo com que o não atendimento do requisitado adeque-se ao crime de desobediência.

Neste sentido, por força legal, no estrito cumprimento do dever legal e com supedâneo no Princípio da Auto-Executoriedade dos Atos Administrativos, dentro da razoabilidade e proporcionalidade,  poderá (ato administrativo  discricionário  regrado) o Delegado de Polícia requisitar informações e outros dados, desde que não exponha a intimidade e a vida privada do investigado, sob pena de responsabilizações criminais e administrativas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.

À título de exemplo, vamos citar um caso sobre ocorrência envolvendo policiais que durante procedimento de abordagem a um indivíduo, de 15 anos de idade, repentinamente sofre um mal súbito e vem a óbito. Dada as circunstâncias da ocorrência e o evento morte, a Autoridade Policial, precisa confeccionar o registro policial com o mínimo de elementos informativos,  médicos,  testemunhais etc,  para auxiliar-lhe na tipificação do fato e que poderá influenciar na condição dos policiais para possíveis suspeitos de alguma infração penal.

Nesse sentido,  o delegado de polícia, comprometido com um trabalho escorreito, cauteloso e transparente, deve contar  com um relatório médico para busca da Verdade Real e da Promoção da Justiça Social e, posteriormente após um exame minucioso pelos Médicos Legistas, poderá valer-se do laudo necroscópico fornecido pelo Instituto Médico Legal.

Ademais, à titulo de ilustração a autoridade policial por imperativo legal pode se valer como meio de prova dos laudos ou prontuários médicos fornecidos por hospitais e postos de saúde, conforme previsão legal do artigo 12, § 3º, da Lei  Federal 11.340/2006.

No mesmo sentido, dispõe o artigo 158 do Código de Processo Penal de que nas infrações que deixam vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado. Situação esta que se faz necessária a documentação médica para instruir a convicção do delegado e do juiz, nos termos do artigo 3º c.c. artigo 156 do Diploma Processual Penal.

Destaque-se, a imposição de um obstáculo desnecessário e improdutivo ao trabalho da Polícia Judiciária, quando deveria imperar uma relação amistosa entre serviços públicos essenciais  como saúde  e segurança.

Destarte, Sub Censura,  não assiste razão ao responsável pelo hospital negar à autoridade policial conteúdo de prontuário de atendimento médico de paciente quando requisitado para auxiliar nas investigações criminais realizadas em inquérito policial, submetendo-se, caso negue as informações requisitadas, ao crime de desobediência, disposto no artigo 330 do Código Penal, e, consequentemente sujeito as responsabilizações civis, nos termos dos artigos 186 e 927 do Código Civil, sem prejuízo do disposto no artigo 37, § 6º, da Constituição Federal.


Notas

[1]     TJ-RJ; HC 4055/2003; Rio de Janeiro; Terceira Câmara Criminal; Rel. Des. Gama Malcher; Julg. 29/05/2001.

[2]     TJMG; HC 1.0000.00.344437-9/000; Ervália; Primeira Câmara Criminal; Rel. Des. Edelberto Lellis Santiago; Julg. 10/06/2003; DJMG 13/06/2003.

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