Alteração da natureza jurídica da ação penal do crime de estelionato e suas implicações no cenário jurídico

A novel Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019, apresenta uma série de mudanças relevantes, entre elas, sobreleva a natureza jurídica da ação penal no crime de estelionato, que passa a ser como regra, condicionada à representação.


A partir de 23 de janeiro de 2020, terá vigência a novel Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019, que tem por escopo aperfeiçoar a legislação penal e processual penal, denominada Pacote Anticrime.

Dentre outras inovações relevantes, sobreleva-nos a alteração da natureza jurídica da ação penal no tocante ao crime de estelionato, descrito no artigo 171 do Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940 – Código Penal Brasileiro, que como regra passará a receber tratamento de ação penal pública condicionada à representação, conforme nova redação inserta no § 5º do referido dispositivo legal, conforme segue:

“Art. 171……………….

§ 5º Somente se procede mediante representação, salvo se a vítima for:

I – a Administração Pública, direta ou indireta;

II – criança ou adolescente;

III – pessoa com deficiência mental; ou

IV – maior de 70 (setenta) anos de idade ou incapaz.” (NR)

Nesse sentido, acreditamos que o legislador avançou, ainda que timidamente, criando o instituto da representação criminal como regra, levando-se em conta o bem jurídico tutelado e a vulnerabilidade dos ofendidos, ajustando-se aos consagrados Princípios da Legalidade Estrita e da Intervenção Mínima do Direito Penal, que limitam o poder do Estado, respectivamente, intervindo naqueles casos previstos em lei e quando algum ato delituoso prejudicar algum bem jurídico e, se outros meios de controle social não sejam suficientes para a tutela desse bem.

O instituto de representação criminal está previsto no artigo 103 do Estatuto Penal, dispondo que:

“Salvo disposição expressa em contrário, o ofendido decai do direito de queixa ou de representação se não o exerce dentro do prazo de 6 (seis) meses, contado do dia em que veio a saber quem é o autor do crime, ou, no caso do § 3º do art. 100 deste Código, do dia em que se esgota o prazo para oferecimento da denúncia”.

No mesmo sentido, está assentado no artigo 38 do Decreto-Lei nº 3.689, de 03 de outubro de 1941-Código Processual Penal, conforme segue:

“Salvo disposição em contrário, o ofendido, ou seu representante legal, decairá no direito de queixa ou de representação, se não o exercer dentro do prazo de seis meses, contado do dia em que vier a saber quem é o autor do crime, ou, no caso do art. 29, do dia em que se esgotar o prazo para o oferecimento da denúncia.”

Depreende-se que o instituto da representação criminal tem dupla previsão, tanto na lei material quanto na instrumental, tratando-se de uma lei penal híbrida ou mista. No entanto, como se trata de causa extintiva de punibilidade, conforme previsão legal do artigo 107, inciso IV, segunda figura, do Código Penal, consectariamente deve ser tratada como norma de direito penal, submetendo-se, portanto, a retroatividade e ultratividade benéfica nos termos do artigo 5º, inciso XL, da Constituição Federal espelhado no artigo 2º, parágrafo único, do Código Penal, conforme segue:

“XL – a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”; e,

Ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença condenatória.

Parágrafo único – A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado.”

Assim, questão tormentosa que se impõe trazer à discussão são os crimes de estelionatos que foram perpetrados antes da vigência da nova legislação em comento, que estão sendo objeto de investigação pelas polícias judiciárias e de ações penais em curso.

Como alhures mencionado, a inovação legislativa da natureza jurídica da ação penal do crime de estelionato, repercute seus efeitos na punibilidade. Noutro sentido, tal alteração por recair sobre condição de procedibilidade de cariz processual penal tem aplicação imediata, sem prejuízo dos atos realizados sob a vigência da lei anterior, conforme disciplina do artigo 2º do aludido diploma processual, deflagrando o princípio da imediata aplicação ou tempus regit actum.

Todavia a Lei de Introdução ao Código de Processo Penal (Decreto-Lei nº 3.931/1941) previu duas exceções ao princípio da aplicação imediata, nos seguintes termos:

a) À prisão preventiva e à fiança aplicar-se-ão os dispositivos que forem mais favoráveis (artigo 2º).

b) O prazo já iniciado, inclusive o estabelecido para a interposição de recurso, será regulado pela lei anterior se esta não prescrever prazo menor do que o fixado no Código de Processo Penal (artigo 3º).

Levando-se em conta que o prazo decadencial disciplinado no artigo 103 do Código Penal e artigo 38 do Código Processual Penal é de seis (06 meses), e, atualmente, há inúmeros expedientes a cargo das polícias judiciárias e em trâmite perante o poder judiciário alusivos aos crimes de estelionatos contemplados pela ação pública condicionada.

Ademais, pressupondo que a partir da vigência da nova lei o ofendido já tinha conhecimento sobre a identidade do autor do crime de estelionato e o prazo de seis (06) meses expirou. Dessa forma, qual solução seria viável para que referida inovação não trouxesse nenhum prejuízo aquelas vítimas de crimes de estelionatos de ação pública condicionada?

A Constituição Federal de 1988 prevê, no artigo 5º, inciso XXXV, inserido no rol de direitos e garantias fundamentais, o princípio da inafastabilidade da jurisdição, também chamado de cláusula do acesso à justiça, ou do direito de ação: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.”

Nesse diapasão, cumpre ao Estado garantir a concretização do direito fundamental de ação daquelas vítimas que foram prejudicadas pelos crimes de estelionatos.

Importante relembrar, que a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, à época, previu em seu artigo 88 que os crimes de lesão corporal leve e lesão corporal culposa transmutariam de ação penal pública incondicionada para condicionada, situação análoga ora apresentada pelo crime de estelionato.

Sendo assim, tencionando resguardar os interesses dos ofendidos com aludida mudança, sobretudo evitar algum prejuízo jurídico aos imputados com o dilatado prazo decadencial de seis (06) meses para que a vítima declinasse sobre eventual interesse de representação criminal. Impôs-se adotar naquela ocasião, um juízo de adequação e proporcionalidade, levando o legislador a inserir na referida Lei o artigo 91, contendo a seguinte redação:

“Nos casos em que esta Lei passa a exigir representação para a propositura da ação penal pública, o ofendido ou seu representante legal será intimado para oferecê-la no prazo de trinta dias, sob pena de decadência.”

Nos termos do artigo 3º do Código Processual Penal, “A lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais do direito”.

Desse modo, “sub censura“, valendo-se da aplicação da analogia, dos princípios da retroavidade e ultra-atividade benéfica da lei, da indeclinabilidade jurisdicional, da razoabilidade e da proporcionalidade, assim como valorando a interpretação teleológica ou finalística da lei, impende-nos adotar um regramento similar àquele gizado no artigo 91 da vetusta Lei nº 9.099/95, naqueles procedimentos – inquéritos ou processos -, que estão em andamento e a autoria esteja devidamente delimitada com o inequívoco conhecimento do ofendido, de modo a resguardar os direitos fundamentais dos protagonistas envolvidos.

Referência:

Silva, Davi André Costa.Direito Processual Penal:Concursos públicos e exames da OAB. 4.ed,rev.,ampl.e atual.-Porto Alegre : Sapiens, 2011.

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