O status de carreira jurídica dos delegados é fruto de um direito fundamental inato de decisão constitucional originária ou política da assembléia nacional constituinte de 05 de outubro de 1988.
(“A razão é serena; a desrazão é que precisa de gritos e ofensas. Luís Roberto Barroso”).
Preambularmente, com a devida vênia e contrariamente ao entendimento externado na Ação Declaratória de Inconstitucionalidade – ADI nº 5.522/2016 proposta pelo ex-procurador geral da república Rodrigo Janot, denota-se, na hipótese vertente, evidente ilegalidade apta a macular, de plano, os argumentos levianamente tecidos em prejuízo da carreira dos delegados de polícia sobre a ausência de independência funcional e o pertencimento às carreiras jurídicas de estado.
Prima facie, a condição sine qua non para investir-se na carreira dos delegados é ser bacharel em direito, ressaltando-se que não foi à toa que tal condição de carreira jurídica, originariamente, foi introduzida nos diplomas dantescos e contemporaneamente pelo parlamentar constituinte de 05 de outubro de 1988, determinando a sujeição de mesmo tratamento dispensado às demais carreiras jurídicas, tratando-se de um indissociável direito e uma garantia fundamental à carreira dos delegados devido a sua histórica vocação jurídica no desempenho de seus misteres no espectro investigatório criminal brasileiro gizados nos singelos manuais de direito e na farta legislação infraconstitucional, ipsis litteris:
“LEI N. 979, DE 23 DE DEZEMBRO DE 1905:
Artigo 4.º – O chefe de Policia, os delegados, subdelegados e seus supplentes, são de livre nomeação e demissão do presidente do Estado, observadas as seguintes regras para as nomeações:
§ 2.º – Só podem ser nomeados delegados de primeira, segunda e terceira classes, os bachareis em direito, tendo os mesmos preferencia para os logares de 4.ª e 5.ª classes”.
“Art. 135. Às carreiras disciplinadas neste Título aplicam-se o princípio do art. 37, XII, e o art. 39, § 1º” . (redação anterior a E.C. 19/98 )
“Art. 241. Aos delegados de polícia de carreira aplica-se o princípio do art. 39, § 1º, correspondente às carreiras disciplinadas no art. 135 desta Constituição” . (redação anterior a E.C. 19/98)
“Artigo 140 – À Polícia Civil, órgão permanente, dirigida por delegados de polícia de carreira, bacharéis em Direito, incumbe, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.
§ 2º – No desempenho da atividade de polícia judiciária, instrumental à propositura de ações penais, a Polícia Civil exerce atribuição essencial à função jurisdicional do Estado e à defesa da ordem jurídica. (NR)
§ 3º – Aos Delegados de Polícia é assegurada independência funcional pela livre convicção nos atos de polícia judiciária. (NR)
§ 4º – O ingresso na carreira de Delegado de Polícia dependerá de concurso público de provas e títulos, assegurada a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em todas as suas fases, exigindo-se do bacharel em direito, no mínimo, dois anos de atividades jurídicas, observando-se, nas nomeações, a ordem de classificação. (NR)”.
“LEI Nº 12.830, DE 20 DE JUNHO DE 2013:
Dispõe sobre a investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia
Art. 2º As funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais exercidas pelo delegado de polícia são de natureza jurídica, essenciais e exclusivas de Estado”.
Nessa trilha, convém ressaltar que tal prerrogativa atribuída aos delegados é decorrente de sua atividade rotineira reconhecendo-se tal cargo como verdadeiro exegeta das normas positivadas no afã de tutelar os direitos e as garantias fundamentais dos cidadãos, evitando-se juízos precipitados nas valorações das circunstâncias fáticas apresentadas, previstas como infrações penais, de modo a resguardar o cidadão de uma acusação infundada e garantindo-lhe uma justa condenação sem ilações ou delírios de subsunção penal.
Anote-se, por oportuno, que o Supremo Tribunal Federal, em reiterados pronunciamentos, tem decidido que os delegados de polícia, defensores públicos e procuradores do Estado são integrantes de carreiras jurídicas (ADINs 138/RJ, 171/MG, 761/RS, entre outras).
Porventura, não quisesse o legislador constituinte impor tal garantia legal à carreira dos delegados estaduais certamente não teria regulamentado expressamente suas funções no artigo 144, inciso IV, § 4º, da Carta Cidadã determinando a realização da apuração (investigação) das infrações penais comuns adotando como instrumental o vetusto inquérito policial disposto explicitamente no artigo 129, inciso VIII, da Lei Fundamental e espelhado no documento jurídico denominado Código de Processo Penal – Decreto-Lei nº 3.689, de 03 de outubro de 1941, a partir do artigo 4º, recepcionado pela referida Carta Cidadã, in verbis:
“Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
I – direito civil, comercial, ‘penal, processual’, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho” ;
“Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:
VIII – requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais” ;
“Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:
IV – polícias civis;
§ 4º Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares”; e,
“Art. 4º A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria”.
Aludida prerrogativa de carreira jurídica é decorrente de decisão constitucional originária ou política, deliberadamente, insculpida no seio constitucional autêntico, de 05 de outubro de 1988, imprescindível, para implementação de suas regulares funções no jaez de bacharel em direito, cuja condição preliminar é requisito centenário para ocupação dessa carreira pertencente à primeira fase da persecução criminal bandeirante e nacional.
Não parece crível, inobstante, tal direito individual fundamental, inerente às funções institucionais da carreira de delegado, alinhavado à “persecutio criminis”, na esteira das demais carreiras similares, e.g., Ministério Público, Magistratura, Defensoria, foi extraído do texto original no artigo 241 da Constituição Federal pela Emenda Constitucional nº 19, de 04 de junho de 1998 -, que modificou o regime e dispôs sobre os princípios e normas da Administração Pública, servidores e agentes políticos, controle de despesas e finanças públicas e custeio de atividades a cargo do Distrito Federal, e dá outras providências -, em evidente atentado a dignidade dos delegados, apoderando-se de direito fundamental para o regular exercício das imanentes funções jurídicas em patente afronta a decisão do legislador constituinte originário em desarmonia aos comezinhos princípios da moralidade administrativa, interesse público, legalidade, transparência e eficiência do serviço público contrapondo-se ao auspicioso estado democrático de direito sem motivação idônea do ato administrativo legiferante como meio de restrição ou privação de direitos fundamentais estampados nos artigos 1º, caput, inciso III; 5º, incisos XLI, LIV e LV; 37, caput, e, 93, inciso IX, da Constituição Republicana, in verbis:
“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos:
III – a dignidade da pessoa humana”;
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XLI – a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais;
LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; e,
LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.”
” Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de ‘legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência’ e, também, ao seguinte […]”.
“Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios:
IX – todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação”.
Insta ressaltar ainda, que o complexo dos direitos individuais e fundamentais estampados no bojo da Constituição Cidadã possuem força irradiante e devem ser tutelados objetivamente pelo Estado, não podendo sofrer solução de continuidade, conforme dicção do artigo 5º, § 1º, da Carta Política, ipsis litteris:
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […]
§ 1º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”.
Nesse diapasão, prevendo tais conjecturas o legislador originário previu as cláusulas pétreas que estão inseridas no artigo 60 da Constituição da Republica Federativa do Brasil de 1988 destinadas como instrumento de preservação dos ideais e valores do poder constituinte originário. São elas que identificam a Constituição Federal e lhe dá ideia de continuidade. Ademais, fazem parte da identidade da Constituição. É o núcleo de matérias que não pode ser abolido ou suprimido do texto constitucional.
Assim, temos que as cláusulas pétreas são as normas que não podem ser deturpadas, sob pena de desvio de finalidade e abuso de poder na ação do constituinte de reforma. Nesse sentido, já expôs o então Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Carlos Ayres Britto:
A eficácia das regras jurídicas produzidas pelo poder constituinte (redundantemente chamado de” originário “) não está sujeita a nenhuma limitação normativa, seja de ordem material, seja formal, porque provém do exercício de um poder de fato ou suprapositivo. Já as normas produzidas pelo poder reformador, essas têm sua validez e eficácia condicionadas à legitimação que recebam da ordem constitucional. Daí a necessária obediência das emendas constitucionais às chamadas cláusulas pétreas. ( ADI 2.356 MC e ADI 2.362 MC, rel. p/ o ac. min. Ayres Britto, j. 25-11-2010, P, DJE de 19-5-2011).
Outrossim, em que pese ser possível alterar a Carta Magna, as Emendas Constitucionais sempre deverão observar as balizas que foram traçadas nas cláusulas pétreas.
Na Constituição de 1988, como já mencionado, as cláusulas pétreas estão encartadas nos quatro incisos do § 4º do artigo 60, que expressamente dispõe:
“§ 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
I – a forma federativa de Estado;
II – o voto direto, secreto, universal e periódico;
III – a separação dos Poderes;
IV -‘os direitos e garantias individuais’ “.
São essas as matérias que o constituinte originário alçou ao patamar mais importante na Constituição Federal, inscritas como intangíveis no fundamento constitucional do direito brasileiro, ou seja, servem como limitadores ao poder de reforma.
Essas limitações ao poder de reforma podem ser materiais ou formais. As cláusulas pétreas materiais dizem respeito a quais matérias não será admitida reforma e subdivide-se em expressas e implícitas. As cláusulas pétreas expressas são aquelas inseridas no artigo supra referenciado.
As matérias que se inscrevem nos incisos do § 4º do art. 60 são intangíveis à mão dos congressistas investidos de poder constituinte derivado. Aliás, poder constituinte derivado, segundo o magistério de Canotilho, não passa de uma paródia.
A respeito do cerne inalterável da Constituição, assim se manifesta José Afonso da Silva:
É evidente que o texto não proíbe apenas emendas que expressamente declarem: fica abolida a Federação ou a forma federativa de Estado, fica abolido o voto direto…, passa a vigorar a concentração de Poderes, ou ainda fica extinta a liberdade religiosa, ou de comunicação…, ou o habeas corpus ou o mandado de segurança…. A vedação atinge a pretensão de modificar qualquer elemento conceitual da Federação, ou do voto direto, ou indiretamente restringe a liberdade religiosa ou de comunicação ou outro direito e garantia individual (“carreira jurídica dos delegados de polícia com isonomia de tratamento às demais carreiras análogas de estado”).
Contudo, não se pode perder de vista que uma norma jamais se restringe a literalidade do dispositivo que a contempla, devendo ser entendida a partir dos fins por ela colimados, bastando que a proposta de emenda se encaminhe ainda que remotamente, tenda (emendas tendentes, diz o texto), para sua abolição. Assim, por exemplo, a supressão de um direito inerente ao exercício de um cargo público estatal de natureza jurídica afronta a dignidade humana de uma classe de trabalhadores, a moralidade administrativa dos atos regidos pela administração pública e a eficiência do serviço público, adotando-se expediente sub-reptício e antidemocráticos para aniquilar direitos e garantias positivados originariamente na Constituição Federal 1988 – carreira jurídica com isonomia de vencimentos às demais carreiras -, assentada em um direito público intrínseco irrenunciável compatível à natureza e complexidade de suas atribuições constitucionais. Emenda que afronte a prerrogativa de um exercício regular de função típica de estado, por mínima que seja, indica tendência a abolir a forma, o direito e uma garantia individual fundamental expressamente vedado pela norma constitucional.
No exercício do poder constituinte derivado, que, como diz Manoel Gonçalves Ferreira Filho, é um poder subordinado, secundário e condicionado, Deputados Federais e Senadores não podem, portanto, desfigurar a Constituição, com propostas de emendas constitucionais que agridam seus princípios fundamentais e sua estrutura de valores.
As emendas constitucionais, oriundas de propostas cujo processo de elaboração não tenha cumprido o procedimento constitucionalmente estabelecido ( §§ 2º, 3º e 5º do art. 60 da CF) ou tenha infringido, mesmo que remotamente, o núcleo intangível da Lei Maior (§ 4º do art. 60), podem ser declaradas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, em ação direta de inconstitucionalidade. O descumprimento das normas procedimentais gera inconstitucionalidade formal e a ofensa às cláusulas pétreas origina inconstitucionalidade material. Em outras palavras, é o que defende José Afonso da Silva: Toda modificação constitucional feita com desrespeito do procedimento especial estabelecido (iniciativa, votação, quórum etc.) ou de preceito que não possa ser objeto de emenda padecerá de vício de inconstitucionalidade formal ou material, conforme o caso, e assim ficará sujeita ao controle de constitucionalidade pelo Judiciário, tal como se dá com as leis ordinárias.
O dispositivo inserto no artigo 60 da Lei Fundamental da República é estreme de dúvidas, constituindo-se um limite material e formal à reforma constitucional ao talante das normas originárias positivadas, pelo que a inobservância de seus preceitos macula do vício inconvalidável de inconstitucionalidade os atos subseqüentes prejudicando direitos constitucionais fundamentais – direitos e garantias individuais – inerentes às prerrogativas dos delegados de polícia com eliminação do antanho artigo 241 da Constituição Federal irradiando nos demais direitos constitucionais da classe sobretudo na consentânea equiparação às demais carreiras jurídicas típicas de estado -, v.g., Ministério Público, Defensoria Pública, Procuradoria do Estado -, inclusive a Emenda que venha a ser promulgada em desrespeito ao quanto ali disposto.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal vem consolidando tal posicionamento doutrinário. Senão, vejamos:
* As normas de uma Emenda Constitucional, emanadas, que são, de constituinte derivada, podem, em tese, ser objeto de controle, mediante ação direta de inconstitucionalidade, pelo Supremo Tribunal Federal, quando confrontadas com normas elaboradas pela Assembléia Nacional Constituinte (originária) (art. 102, I, a) (Ementa da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 926-5 – DF).
* As limitações materiais explícitas, definidas no § 4º do art. 60 da Constituição da Republica, incidem diretamente sobre o poder de reforma conferido ao Poder Legislativo da União, inibindo-lhe o exercício nos pontos ali discriminados. A irreformabilidade desse núcleo temático, acaso desrespeitada, pode legitimar o controle normativo abstrato, e mesmo a fiscalização jurisdicional concreta, de constitucionalidade (Ementa da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 466).
* Emendas à Constituição que não são normas constitucionais originárias podem, assim, incidir, elas próprias, no vício da inconstitucionalidade, configurado pela inobservância de limitações jurídicas superiormente estabelecidas no texto constitucional por deliberação do órgão exercente das funções constituintes primárias ou originárias (Voto do Ministro Celso de Mello, como relator, na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 466).
* Uma Emenda Constitucional, emanada, portanto, de Constituinte derivada, incidindo em violação à Constituição originária, pode ser declarada inconstitucional, pelo Supremo Tribunal Federal, cuja função precípua é de guarda da Constituição (art. 102, I, a, da CF) (Ementa da ADIN nº 939-7 DF).
Como assinalamos anteriormente, ressaltando doutrina e jurisprudência pertinentes, o § 4º do artigo 60 da Constituição tornou imunes a qualquer alteração posterior os fundamentos explícitos da estrutura constitucional brasileira. As emendas constitucionais que não respeitarem esses limites serão inconstitucionais sob o ponto de vista material.
A emenda constitucional, por exemplo, que busque a centralização na União de competência originária atribuída aos Estados-membros e a supressão de direitos fundamentais de uma classe de agentes públicos consideradas como carreira de estado (supressão do regime ou carreira jurídica), afronta o princípio federativo e uma garantia individual, definidos como cláusulas pétreas pelos incisos I e IV do § 4º do artigo 60 da Constituição, gerando inconstitucionalidade material.
Repise-se, é o caso da Emenda Constitucional nº 19, promulgada em 04 de junho de 1998, que, alterando a redação do artigo 241 da Constituição Federal, subtraiu a prerrogativa de carreira jurídica em face às demais carreiras análogas estampadas a partir do artigo 127 da Bíblia Política, num flamejante flagrante de desrespeito ao princípio da cláusula constitucional super-rígida da vedação de abolição de direitos e garantias fundamentais plasmado no artigo 60, § 4º, inciso IV, da Norma Fundamental.
Sendo assim, compete aos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, guardar os valores autênticos da Constituição e das instituições democráticas decorrentes do poder constituinte originário – a Assembléia Nacional Constituinte – que fez a Constituição, o poder de fato.
O poder constituinte derivado é poder constituído. É o poder jurídico, subordinado aos limites circunstanciais (art. 60, § 1º, da CF), procedimentais (art. 60, §§ 2º, 3º e 5º) e materiais, as chamadas cláusulas pétreas (art. 60, § 4º), além de submeter-se aos limites implícitos decorrentes dos princípios constitucionais.
Desse modo, a emenda constitucional, proveniente que é do poder constituinte derivado, que desrespeite tais limitações, expressas e implícitas no texto da Lei Maior, ficará sujeita ao controle de constitucionalidade, em tese, pelo Supremo Tribunal Federal na condição de guardião.
A emenda constitucional que atente contra o princípio intangível da vedação tendente a abolir direitos e garantias fundamentais, deve, portanto, ser declarada inconstitucional, por ferir o cerne inalterável da Constituição (art. 60, § 4º, IV), sendo o caso da Emenda Constitucional nº 19/98, que infundadamente aboliu o direito individual fundamental inerente a carreira jurídica da classe dos delegados com eventuais reflexos nos demais diplomas infraconstitucionais, cujo atributo representa uma condição imprescindível para o regular exercício de suas funções com a necessária independência funcional e livre convicção-jurídica justificada no âmbito dos atos de polícia judiciária na perspectiva do sistema de governo republicano em consonância com o artigo 2º da Constituição Cidadã.
Por conseguinte, suprimindo-se tal direito e uma garantia fundamental da carreira de delegado subsiste o risco de suas atividades serem acoimadas de clandestinas na contramão do interesse coletivo e da finalidade pública fincados nos princípios da legalidade, moralidade administrativa e na eficiência de tal serviço público tido por essencial para manutenção do estado democrático de direito e supedâneo do poder judiciário na tutela dos direitos e dignidade humana.
Nessa linha de raciocínio, vale transcrever o célebre posicionamento proferido, em 04/03/2015, durante Sessão Plenária pelo decano recém-aposentado Celso de Mello, em seu voto, no Habeas Corpus 84.548/SP, in verbis:
“O Delegado de Polícia é o primeiro garantidor da legalidade e da justiça”.
Ao fim e ao cabo, é possível uma Emenda para melhorar o Texto Constitucional vigente referente às cláusulas pétreas e aos demais princípios fundamentais, mas nunca tendente a abolir tais garantias ou que deturpe os valores originais da Carta, podendo as modificações ocorrerem para ampliação do espectro protegido e não para restrição ou distorção de direitos como no caso em comento e concernente à ADI 5.522/2016.
Referência:
BRASIL. Constituição Federal de 1988. Promulgada em 5 de outubro de 1988.http://www.planalto.gov.br/ccivil_03 /constituição /constituição.htm
https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei/1905/lei-979-23.12.1905.html
STF: ADI 2.356 MC; ADI 2.362 MC; ADI 2.024; HC 82.959/SP; ADI 939-07/DF; ADI 3.685/DF; ADINs 138/RJ, 171/MG, 761/RS.
CANOTILHO, J. J. Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição da Republica Portuguesa anotada. São Paulo: Revista dos Tribunais; Coimbra: Coimbra Editora, 2007.
Curso de direito constitucional positivo / José Afonso da Silva. – 41. ed., rev. e atual. / até a Emenda Constitucional n. 99, de. 14.12.2017.
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. O poder constituinte. 4 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2005.