A requisição para instauração de inquérito policial não deve ser interpretada como ordem, mas sim como imperativo legal, onde seu cumprimento pela autoridade policial demanda a presença de requisitos que deverão estar presentes nos elementos encaminhados.
Este é o nosso ponto de partida para que possamos entender a nova dinâmica dada pelos preceitos constitucionais e legais sobre o tema em debate. E mais, necessário trazer ao tema a definição de ação penal, que é o direito público subjetivo de pedir ao Estado-Juiz a aplicação do direito penal objetivo a um caso concreto, sendo este direito respaldado no art. 5º, XXXV, que prevê que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
Regra geral, os crimes se processam mediante ação penal pública incondicionada, motivo pelo qual o inquérito policial poderá ser instaurado de ofício por força do princípio da obrigatoriedade, estendendo-se tal princípio à fase investigatória (3). Logo, caso o delegado de polícia tome conhecimento do fato delituoso a partir de suas atividades rotineiras (p.ex. notícia veiculada na imprensa, registro de ocorrência, etc.) surge o dever de instaurar o inquérito policial, independentemente de provocação, nos termos do art. 5º, I, do Código de Processo Penal.
Poderá o inquérito policial também ser instaurado mediante requerimento do ofendido ou de quem tenha qualidade para representá-lo, devendo o requerimento, neste caso, conter, sempre que possível: a) a narração do fato, com todas as circunstâncias; b) a individualização do indiciado ou seus sinais característicos e as razões de convicção ou de presunção de ser ele o autor da infração, ou os motivos de impossibilidade de o fazer; c) a nomeação das testemunhas, com indicação de sua profissão e residência.
Ocorre que nem todos os crimes se procedem mediante ação penal pública incondicionada. A própria legislação penal traz exceções, dando ao ofendido o direito de ver o seu algoz perseguido e punido criminalmente, caso assim entenda. É o que ocorre com as ações penais públicas condicionadas à representação/requisição do Ministro da Justiça e com os crimes cuja a ação seja de natureza privada.
Sem nos distanciarmos do tema abordado, os crimes processados mediante ação penal pública também podem ter a persecução penal iniciada por meio de requisição da autoridade judiciária (4) ou do Ministério Público (5). Segundo Guilherme de Souza Nucci (6), a requisição:
é a exigência para a realização de algo fundamentada em lei. Assim, não deve confundir requisição com ordem, pois nem o representante do Ministério Público, nem tampouco o juiz, são superiores hierárquicos do delegado, motivo pelo qual não lhe podem dar ordens. Requisitar a instauração do inquérito é diferente, pois é um requerimento lastrado em lei, fazendo com que a autoridade policial cumpra a norma e não a vontade particular do promotor ou do magistrado.
Extrai-se das lições de Nucci que a “requisição” se trata de uma atribuição exclusiva dos juízes e membros do Ministério Público da área criminal, uma vez que é um desdobramento natural do controle e da fiscalização da Polícia Judiciária no que toca à obrigatoriedade de apuração de um delito cuja ação penal seja pública incondicionada.
Logo, se outras autoridades e promotores de justiça atuantes em outras esferas (cível, meio ambiente, por exemplo) tomarem conhecimento de crimes que sejam processados mediante ação penal pública incondicionada, deverão comunicá-los ao delegado de polícia, que instaurará inquérito policial, se entender pela existência de elementos mínimos para tanto, como consequência do recebimento de uma notitia criminis, não havendo o caráter requisitório em tais informações.
Tais autoridades em exercício na esfera extrapenal também poderão oficiar diretamente aos juízes e promotores de justiça criminais para que tomem as medidas cabíveis, os quais poderão requisitar a instauração de inquérito policial (7) se assim entenderem pertinentes, ou, até mesmo, oferecerem a denúncia, nos casos em que entendam pela existência de justa causa.
E aqui surge uma pergunta: em se tratando de requisição de instauração de inquérito policial, o Delegado de Polícia tem o dever de instaurá-lo? A própria redação do art. 5°, II do Código de Processo Penal diz que: “nos crimes de ação pública o inquérito policial será iniciado: mediante requisição da autoridade judiciária ou do Ministério Público (…)”.
De uma simples análise da lei e com fundamento no princípio da obrigatoriedade (8) da ação penal pública, tal expressão pode demonstrar imperatividade, fazendo com que o delegado de polícia tenha o dever jurídico de instaurar o inquérito nos crimes de ação penal pública que lhe forem encaminhados com requisições judiciais ou ministeriais.
É de se ressaltar que não há hierarquia (9) entre juízes de direito, promotores de justiça e delegados de polícia, mas sim há, por força do princípio da obrigatoriedade e da força da lei, o dever imposto aos delegados de polícia de apurar fatos quando da ciência de um crime cuja ação penal seja pública incondicionada.
Ocorre que aqui surge uma problemática. E se a requisição não fornecer nenhum dado específico quanto ao local do crime, ou fornecê-los de modo vago que impossibilite o início das investigações? Somente para ilustrarmos, pedimos ao leitor para que imaginem uma requisição judicial ou ministerial que apenas disse que na data “tal” houve um crime de roubo na rua “tal”, sem indicar, ao menos a vítima ou outro elemento necessário para que os fatos sejam inicialmente apurados.
Sabemos que as requisições dirigidas ao delegado de polícia para que seja instaurado inquérito policial, em tese, devem conter dados suficientes que possibilitem a autoridade policial tomar as providências investigatórias iniciais e nortear a persecução criminal do fato.
Por este motivo entendemos não ser cabível o encaminhamento de ofício genérico requisitando a instauração de inquérito, sob pena de a medida não ser eficaz, e tornar o inquérito policial um instrumento apático e ineficiente dentro do cenário jurídico.
Neste aspecto, temos em mente que o inquérito policial é a mais importante peça jurídica investigatória existente no sistema processual penal brasileiro, o qual somente deve ser iniciado caso as informações prestadas inicialmente sejam verificadas preliminarmente pela autoridade policial (ver art. 5°, § 3° do CPP), pelo órgão requisitante ou, até mesmo, pela possível vítima que procura o delegado de polícia, fazendo com que haja um lastro probatório mínimo para o início das investigações.
Deste modo, na hipótese de haver uma requisição genérica para instauração de inquérito policial, explica Fernando da Costa Tourinho Filho que deverá o delegado de polícia, invocando a sua independência funcional, oficiar à autoridade requisitante, mostrando-lhe, de modo fundamentado, a impossibilidade de iniciar qualquer investigação e, ao mesmo tempo, solicitando-lhe outras informações.
Trocando em miúdos, a ordem legal que vale para o delegado de polícia, também vale para a autoridade requisitante, não devendo a autoridade policial instaurar o inquérito apenas para satisfazer o magistrado ou o promotor de justiça. Neste sentido, ensina Tourinho que “se se tratar de atipicidade, deve a autoridade policial oficiar ao órgão requisitante mostrando-lhe a total impossibilidade de cumpri-la por se tratar de ordem manifestamente ilegal”.
Acrescentamos, ainda, que não só os fatos atípicos devem ser devolvidos, fundamentadamente, à autoridade requisitante, mas também fatos típicos prescritos e, como já dito, requisições carentes de informações mínimas para a instauração de inquérito policial.
Além disso, muitas vezes no exercício de seu mister, o delegado de polícia tem se deparado com requisições que determinam a instauração de inquéritos policiais para apurar crimes que somente se processam mediante representação da vítima ou por meio de queixa crime. Tais requisições possuem base legal e estão previstas no artigo 5º, inciso II, do Código de Processo Penal.
Todavia, o referido artigo 5° do CPP se refere somente as ações penais públicas incondicionadas, havendo tratamento específico para os crimes que se procedem mediante ações penais públicas condicionadas e privadas, conforme estabelece o art. 5°, §§ 4° e 5° do Código de Processo Penal. Sobre o tema, Nucci (10) ensina que:
(…) O caput deste artigo refere-se, naturalmente, à ação pública incondicionada, uma vez que, conforme estipula o § 4°, a representação é indispensável para o início do inquérito policial nos casos em que a ação pública igualmente for condicionada a representação. Logo, não haverá instauração de oficio, nem por requisição do promotor ou do juiz, desprovida da iniciativa da vítima (…). Quando se tratar de crime de ação privada, cuja iniciativa é do particular, não há representação, uma vez que o Ministério Público não é legitimado a agir. Assim, para que o inquérito seja instaurado, deve haver requerimento expresso do ofendido, que demonstra, então, o seu objetivo de, futuramente, ingressar com ação penal.
Logo, somente com a representação/requerimento da vítima, verificar-se-á presente a condição específica de procedibilidade para início da investigação. Especificamente no tocante à ação penal privada, apesar de o Ministério Público agir em tais casos apenas na condição de fiscal da lei, entendemos que este órgão não possui legitimidade para requisitá-la, uma vez que somente em crime de ação penal pública, incondicionada ou condicionada, possui tal prerrogativa.
Sobre o tema, Renato Brasileiro de Lima (11), ensina que:
Em se tratando de crime de ação penal de iniciativa privada, o Estado fica condicionado ao requerimento do ofendido ou de seu representante legal. Nessa linha, dispõe o artigo 5º, §5º, do Código de Processo Penal, que a autoridade policial somente poderá proceder a inquérito nos crimes de ação privada a requerimento de quem tenha qualidade para intentá-la. No caso de morte ou ausência do ofendido, o requerimento poderá ser formulado por seu cônjuge, ascendente, descendente ou irmão (artigo 31 do CPP). (…) Como se vê, esse requerimento é condição de procedibilidade do próprio inquérito policial, sem o qual a investigação sequer poderá ter início. Esse requerimento deve ser formulado pelo ofendido dentro do prazo decadencial de 6 (seis) meses, contado, em regra, do dia em que vier a saber quem é o autor do crime.
Assim, eventual instauração de inquérito policial por meio de requisição do Ministério Público em crime cuja ação penal seja de natureza privada, caracteriza uma ilegalidade, surgindo a possibilidade de ser o inquérito policial trancado por meio de habeas corpus. Este é o entendimento da jurisprudência:
Habeas corpus – violência doméstica – difamação e injúria – ação penal privada – pedido de trancamento da ação-ausência de requerimento da vítima em inquérito policial – recebimento da denúncia – impossibilidade – condição específica de procedibilidade – ordem concedida. (HC 6073 MS 2010.006073734-9, relator: des. Romero Osme Dias Lopes, julgamento: 22/03/2010, órgão julgador 2ª turma criminal, publicação: 25/03/2010).
Vale ressaltar que a Polícia Judiciária, no desempenho de sua atividade, é órgão instrumental à propositura de ações penais, exercendo atribuição essencial à função jurisdicional do Estado e à defesa da ordem jurídica (12).
Além disso, é assegurada independência funcional aos delegados de polícia pela livre convicção nos atos de polícia judiciária (13) e, neste sentido, ensina Pedro Lenza (14) que a independência funcional consiste na autonomia de convicção, na medida de que seu titular não se submete a qualquer poder hierárquico no exercício de seu mister, podendo agir da maneira que melhor entender.
O autor também explica que a hierarquia existente se restringe às questões de caráter administrativo, materializada pelo chefe da instituição, mas nunca se relacionas as atribuições funcionais, sob pena de caracterizar eventual crime de responsabilidade e improbidade administrativa.
Assim, vê-se que a atividade do delegado de polícia quanto aos atos de polícia judiciária é motivada pela sua livre convicção, respeitados os limites da legalidade.
Evidente que não pode o delegado de polícia agir fora dos parâmetros legais, porém, tampouco se pode dizer que sua atividade se restrinja à mera e fria subsunção dos fatos aos tipos penais. Pelo contrário, a atividade do delegado implica em verdadeira análise técnico-jurídica do fato que lhe é apresentado, a qual não se limita a um simples juízo de tipicidade, envolvendo certo grau de discricionariedade sempre de forma fundamentada.
Neste diapasão, segundo o Ministro Celso de Melo, “o delegado de polícia é o primeiro garantidor da legalidade e da justiça” (15), e deste modo, não se mostra razoável, tampouco justificável, que atos de Polícia Judiciária sejam praticados após a ocorrência de ilegalidades, sob pena de retornarmos a um antigo Estado policialesco, totalmente incompatível com o Estado Democrático de Direito conquistado com a promulgação da Constituição Federal vigente.
Portanto, pode ser concluído que a requisição para instauração de inquérito policial é um imperativo legal que não se confunde com ordem, cabendo ao delegado de polícia, ao receber a requisição, analisar os fatos e fundamentos apresentados para que decida sobre a instauração, ou não, de inquérito policial, não sendo seu ato negativo entendido como ato ímprobo em razão da sua independência funcional, motivação e sujeição à legislação vigente.
Bibliografia
DE LIMA, Renato Brasileiro. Manual de Processo Penal – volume único. 2ª Edição. Editora Juspodivm, Salvador, 2014.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. Editora Saraiva, 15ª Edição, São Paulo.
NUCCI, Guilherme de Souza. “Código de Processo Penal Comentado”, 10ª Edição, 2010. Editora Revista dos Tribunais.
PEREIRA, Maurício Henrique Guimarães. “Habeas Corpus e polícia judiciária”.
(3) Luigi Ferrajoli define tal postulado como “a obrigação dos órgãos de acusação pública de promover o juízo para toda notitia criminis que vier a seu conhecimento – ainda que para requerer o arquivamento ou a absolvição caso considerem o fato penalmente irrelevante ou faltarem indícios de culpabilidade” (Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. P.457).
(4) Outra corrente doutrinária, como Renato Brasileiro de Lima defende que “apesar de o CPP fazer menção à possibilidade de a autoridade judiciária requisitar a instauração de inquérito policial, penso que tal possibilidade não se coaduna com a adoção do sistema acusatório pela Constituição Federal”. “Num sistema acusatório, onde há a nítida separação das funções de acusar, defender e julgar (CF art. 129, I), não se pode permitir que o juiz requisite a instauração de inquérito policial, sob pena de evidente prejuízo a sua imparcialidade. Portanto, deparando-se com informações acerca da prática de ilícito penal, deve o magistrado encaminhá-las ao órgão do Ministério Público, nos exatos termos do art. 40 do CPP”.
(5) Art. 5º. Nos crimes de ação pública o inquérito policial será iniciado: II – mediante requisição da autoridade judiciária ou do Ministério Público (…).
(6) NUCCI, Guilherme de Souza. “Código de Processo Penal Comentado”, 10ª Edição, 2010. Editora Revista dos Tribunais. Pág. 86.
(7) PEREIRA, Maurício Henrique Guimarães. “Habeas Corpus e polícia judiciária”. Pag. 216 e 220.
(8) Para este princípio, é dever dos órgãos persecutórios criminais obrigatoriamente atuarem, desde que concorram as condições exigidas em lei. Os órgãos da persecução penal não podem se inspirar em motivos de conveniência, oportunidade ou utilidade social. Assim, identificada a hipótese legal de agir, a polícia judiciária deve investigar a infração penal, instaurando o inquérito policial.
(9) A ausência de hierarquia foi consolidada com o advento da Lei nº. 12.830/2013, em que seu artigo 3º determina que os delegados de polícia recebam o mesmo tratamento protocolar conferido a magistrados, membros do ministério público, defensores públicos e advogados.
(10) Op. Cit. p. 90.
(11) DE LIMA, Renato Brasileiro. Manual de Processo Penal – volume único. 2ª Edição. Editora JusPODIVM, Salvador, 2014. Pág. 122.
(12) Artigo 140, §2º, da Constituição do Estado de São Paulo.
(13) Artigo 140, §3º, da Constituição do Estado de São Paulo.
(14) LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. Editora Saraiva, 15ª Edição, São Paulo, pág. 766.
(15) HC 84548/SP, rel. Min. Marco Aurélio, 21.6.2012.