O MITO DO “TCO”: ANÁLISE RACIONAL E TÉCNICA DA ATRIBUIÇÃO PARA LAVRATURA DO TERMO CIRCUNSTANCIADO DE ACORDO COM POSIÇÃO MAJORITÁRIA DO STF
Recentemente veiculou-se em redes sociais e até em ensaios de alguns jornais julgamento ainda não submetido a plenário, em caráter monocrático, do Ministro Gilmar Mendes acerca da ampliação do conceito de “autoridade policial”a qualquer servidor integrante de carreiras previstas no artigo 144 da Constituição Federal para fins de definição da atribuição legal acerca da lavratura do termo circunstanciado, procedimento deflagrado nos casos de infração de menor potencial ofensivo na forma do que prevê a Lei 9099/95 em seu artigo 69, compreendendo as infrações penais cujas penas abstratamente cominadas não ultrapassem 2 (dois) anos.
Porém o que se desconsiderou plenamente na difusão desta informação, talvez por propósitos corporativistas ou desconhecimento do sistema constitucional vigente, foi que esta posição monocrática do Ministro Gilmar Mendes, além de ser somente um precedente, contraria frontalmente a jurisprudência amplamente majoritária do próprio Supremo Tribunal Federal.
Inicialmente, urge ressaltar (até em nível redundante) que as atribuições de polícia judiciária e investigação de crimes comuns incumbem à Polícia Civil e à Polícia Federal, dirigida por Delegado de Polícia (art. 144, §4º da CF, art 4º do CPP e art. 2º, §1º da Lei 12.830/13). Outras instituições como as Polícias Militares e as Polícias Rodoviárias Federais possuem clara atribuição constitucional delimitada em alcance e sentido, qual seja, respectivamente, a preservação da ordem pública e o policiamento ostensivo e o patrulhamento ostensivo das rodovias federais, bem como ações administrativas de fiscalização do tráfego e trânsito na infraestrutura rodoviária da União.
Mesmo o discurso contra a impunidade não pode justificar a mitigação irresponsável de direitos fundamentais e a escancarada afronta à divisão de atribuições. A investigação formalizada pela Polícia Judiciária atende a uma função de salvaguarda da sociedade, manifestando-se como um freio aos excessos da perseguição policial. Dessa forma, a perseguição do crime pode e deve ser feita sem necessidade de ultrapassar os limites de atuação dos órgãos estatais.
Cabe destacar também que a repartição orgânica de atribuições, o princípio da legalidade e a competência do ato administrativo impedem que qualquer outro agente público diverso do Delegado de Polícia exerça a função de Autoridade Policial. É a inteligência do art. 37 da Constituição Federal, dos arts. 2º, 11, 13 e 53 da Lei 9.784/99, art. 2º, a da Lei 4.717/65, e dos arts.
1º e 2º do Código de Conduta para os Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei (Resolução 34/169 da ONU). Cuida-se de garantia do cidadão, no sentido de que na investigação criminal os fins não podem justificar os meios e a pessoa investigada não pode ser colocada na condição de objeto.1
O Supremo Tribunal Federal possui posição pacífica, fruto de diversos julgados do Plenário, no sentido de que nenhum outro agente público está autorizado a exercer função de Autoridade Policial (ADI 2427, Rel. Min. Eros Grau, DJ 30/08/2006; ADI 3441, Rel. Min. Carlos Britto, DJ 09/03/2007; ADI 1570, Rel. Min. Mauricio Corrêa, DJ 12/02/2004). O Superior Tribunal de Justiça não destoa (RMS 37.248, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, DJ 27/08/2013).2
O conceito legal de Autoridade Policial remete única e exclusivamente ao Delegado de Polícia, sendo esta a previsão do art. 2º. § 1º da Lei 12.830/13, que também ficou assentada no Parecer no Projeto de Lei do Senado 316/95, elaborado pelo congressista e constitucionalista Michel Temer.
Outro não poderia ser o rumo legislativo, ao se considerar que o Delegado de Polícia pertence a uma carreira jurídica, como deixou bem claro a Corte Suprema por meio do Tribunal Pleno em várias oportunidades (ADI 3441, Rel. Min. Carlos Britto, DJ 09/03/2007; ADI 2427, Rel. Min. Eros Grau, DJ 30/08/2006; ADI 3460, Rel. Min. Ayres Brito, DJ 31/08/2006). Diversamente do patrulheiro, que consiste em agente da Autoridade Policial, assim como os milicianos, segundo a visão do STF (RE 401243, Rel. Min. Marco Aurelio, DP 18/10/2010).
Noutro passo, sabe-se que o termo circunstanciado de ocorrência é um dos procedimentos policiais que materializam a investigação criminal, existindo inclusive expressa previsão legal nesse sentido (art. 2º, §1º da Lei 12.830/13).
Neste diapasão, cumpre asseverar que o sistema processual penal pátrio não autoriza a Polícia Rodoviária Federal ou a Polícia Militar a lavrar termo circunstanciado de ocorrência, porquanto a atribuição para conduzir a investigação criminal é outorgada ao Delegado de Polícia. Qualquer acordo em sentido contrário reveste-se de evidente inconstitucionalidade.
O Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal consolidou entendimento no sentido de que à Polícia Farda da não incumbe a apuração de infrações penais comuns, não podendo, portanto, elaborar termo circunstanciado de ocorrência ou praticar qualquer outro ato de polícia judiciária:
A questão que me parece complicada é a transferência das funções para pessoas que não integram o cargo e que têm funções muito específicas. (…) Tenho medo de que o desvio de função, algo inaceitável no sistema administrativo, esteja sendo legitimado. (Min. Carmen Lúcia).
1 Vide HOFFMANN, Henrique. Atribuição para confecção de Termo Circunstanciado de Ocorrência. In: HOFFMANN, Henrique. et al. Investigação Criminal pela Polícia Judiciária. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2016, p. 129-136.
2 ZANOTTI, Bruno e SANTOS, Cleopas Isaias. Delegado de Polícia em Ação. Bahia: Editora Juspodium, 2017.
O problema grave é que, antes da lavratura do termo circunstanciado, o policial militar tem de fazer um juízo jurídico de avaliação dos fatos que lhe são expostos. É isso o mais importante do caso, não a atividade material de lavratura. É que, quanto a esse tal de termo circunstanciado a que se refere o artigo 5º, das duas uma: ou não é atividade de policia judiciária, ou é atividade de policia judiciária (Min. Cezar Peluso).
O que se mostra grave, aí, são as consequências jurídicas que decorrem, exatamente, da elaboração do termo circunstanciado de ocorrência (Min. Celso de Mello).
É exatamente dessa avaliação jurídica. Isso que é grave (Min. Cezar Peluso).
Há consequências jurídicas severíssimas pelo preenchimento de um termo de ocorrência por uma pessoa que não tenha nenhuma formação para isso. Quem já militou na advocacia criminal, nas delegacias de policia, sabe muito bem o que ocorre com o termo de ocorrência mal formulado, mal redigido, mal identificado, mal tipificada a circunstancia que causou o termo de ocorrência (Min. Menezes Direito).
Parece-me que ele está atribuindo a função de polícia judiciária aos policiais militares de forma absolutamente vedada pelos artigos 144,§§ 4º, e 5º da Constituição (Min. Ricardo Lewandowski).
Tem-se, no artigo 144 da Constituição Federal, balizas rígidas e existentes há bastante tempo sobre as atribuições das Polícias Civis e Militares. No caso da Polícia Militar, está previsto que cabe a ela a polícia ostensiva e a preservação da ordem, mas não a direção de uma delegacia de polícia (Min. Marco Aurélio). Creio que as duas polícias, civil e militar, têm atribuições, funções muito específicas e próprias, perfeitamente delimitadas e que não podem se confundir (Min. Ellen Gracie).
(STF, Tribunal Pleno, ADI 3614, Rel. Min. Carmen Lúcia, DJ 23/11/07).
Em julgado extremamente recente, no Agravo Regimental no Recurso Extraordinário 702617, relator ministro Luiz Fux, a Primeira Turma do STF decidiu pela impossibilidade de lavratura de TC pela PM:
“(…). ATRIBUIÇÃO PARA LAVRAR TERMO CIRCUNSTANCIADO. LEI 9.099/95. ATIVIDADE DE POLÍCIA JUDICIÁRIA”.
Na decisão agravada do ministro Luiz Fux, constou:
“O Plenário do Supremo Tribunal Federal, ao julgar a ADI nº 3.614, que teve como redatora para o acórdão a Ministra Cármen Lúcia, pacificou o entendimento segundo o qual a atribuição de
polícia judiciária compete à Polícia Civil, devendo o Termo Circunstanciado ser por ela lavrado, sob pena de usurpação de função pela Polícia Militar”.
A decisão legitima o porque da existência da Polícia Civil e Federal no papel de polícias judiciárias estritamente imbuídas de função apuratória geral.
Esse entendimento é albergado ainda pela doutrina amplamente majoritária, a exemplo de Nestor Távora, Guilherme de Souza Nucci, Paulo Rangel, Julio Mirabete, Vicente Greco Filho, Fernando Tourinho Filho, Afrânio Silva Jardim, Alexandre Morais da Rosa, René Dotti e Rômulo Moreira.
Portanto, muita cautela na forma de se propagar como fato consumado um posicionamento isolado e que contraria julgados inúmeros do Supremo Tribunal Federal, sob pena de se produzir uma nova pós-verdade, tão comum nesses tempos imprevisíveis.
Rodolfo Queiroz Laterza, Presidente da Federação Nacional dos Delegados de Polícia Civil – FENDEPOL, Mestre em Segurança Pública.