O crime de descumprimento de medida protetiva é o único crime previsto na Lei Maria da Penha e, em suma, trata-se de crime próprio, podendo ser praticado por aquele que tem sobre si ordem judicial relacionada às medidas protetivas de urgência. Pode ser praticado tanto por homem, quanto por mulher, haja vista a possibilidade de a medida ser decretada em relações homoafetivas e desde que envolva indivíduos do mencionado gênero.
O crime é doloso e sua prática pode se dar tanto pela forma comissiva ou omissiva, o que pode ser verificado no caso de descumprimento da medida prevista no art. 22, V da Lei 11.340/06[2]. A ação penal é pública incondicionada e o bem jurídico diretamente tutelado é a administração pública, assim como no crime de desobediência previsto no Código Penal.
Quanto a atuação do delegado de polícia, diante de uma situação, em tese, flagrancial, deverá precaver-se no tocante à necessidade de o conduzido ter sido intimado da decisão judicial relacionada à decretação da medida. A intimação do conduzido acerca do teor da medida protetiva é condição sine qua non para a prática criminosa. Logo, ausente a intimação, ato oficial de ciência, inexistente será o dolo em descumpri-la.
Outra indagação que pode surgir diz respeito ao fato de a mera ciência do agressor acerca da postulação de medidas protetivas pela vítima – ainda pendente de apreciação do Poder Judiciário – seria suficiente para configurar o crime em tela. Pensamos que não. O tipo penal diz claramente “ordem judicial” e que a intimação seja de tal ordem, e não da postulação das medidas protetivas pela vítima na Delegacia de Polícia.
Nesta linha de intelecção, para a configuração do crime do art. 24-A da Lei nº 11.340/06, é necessário o dolo e a ciência prévia da medida protetiva imposta em desfavor do agressor, pouco importando a competência do juízo que deferiu a deferiu. Além disso, pensa-se que a não observação da medida protetiva poderá acarretar ao descumpridor, de forma cumulativa, a imposição de outras, inclusive, a prisão preventiva, não excluindo a prática criminosa.
Passada esta primeira fase e ciente a autoridade policial de que o conduzido havia sido intimado do teor da decisão judicial relacionada à medida protetiva de urgência, caberá ao delegado de polícia agir nos moldes do previsto no art. 24-A da Lei 11.340/06.
Aqui estamos diante de outra complicação, porquanto na Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 19, o Supremo Tribunal Federal acompanhou o posicionamento da doutrina majoritária e decidiu, dentre outras situações, que aos crimes praticados no contexto da violência doméstica e familiar (Lei 11.340/2006 – Lei Maria da Penha), não se aplicaria a Lei nº 9.099/1995 (Lei dos Juizados Especiais Criminais). Em outras palavras, a nenhum crime praticado em tais condições caberia a lavratura de Termo Circunstanciado de Ocorrência e outras medidas previstas na lei do JECRIM:
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER – REGÊNCIA – LEI Nº 9.099/95 – AFASTAMENTO.
O artigo 41 da Lei nº 11.340/06, a afastar, nos crimes de violência doméstica contra a mulher, a Lei nº 9.099/95, mostra-se em consonância com o disposto no § 8º do artigo 226 da Carta da República, a prever a obrigatoriedade de o Estado adotar mecanismos que coíbam a violência no âmbito das relações familiares”. (Acórdão da ADC nº 19, STF, DJE nº 80, divulgado em 28/04/2014, pag. 02).
Nesse sentir, conforme estabelece o art. 41 da Lei Maria da Penha “aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995”.
Inegavelmente, surgirão duas correntes sobre o tema. A primeira diz respeito ao fato de que o crime tem como vítima indireta a mulher e que o art. 41 aplica-se ao caso concreto, devendo o descumpridor ser preso em flagrante delito sem a possibilidade de o delegado de polícia arbitrar-lhe fiança sob o pretexto de que a Lei Maria da Penha afastou, expressamente, a incidência da Lei nº 9.099/1995.
Outro argumento de está no fato de que haveria uma “espécie de violência indireta”, dirigida à mulher, vítima secundária do delito, não obstante o Estado seja vítima primária da conduta praticada.
Outro argumento de defesa, é o de que, apesar de o injusto penal do art. 24-A da Lei nº 13.641/2018 fazer alusão ao fato de “desobedecer decisão judicial”, implicitamente restaria tutela indireta da mulher, já que a ordem judicial, num segundo plano, teria como fundo protegê-la de novas investidas por parte do agressor, causando abalos psicológicos e outras formas de violência contra a mulher.
A segunda corrente, por sua vez, com a qual concordamos, é a de que, além de o tipo penal estabelecer pena máxima prevista de 02 anos de detenção, este não é um crime praticado com “violência doméstica e familiar contra a mulher”, não se encaixando em nenhuma das formas de violência contra a mulher previstas no art. 7° da Lei 11.340/06 ou outras análogas.
Muito embora, pelo que se verifica da justificativa do Projeto de Lei, a intenção do legislador tenha sido no sentido da não aplicabilidade da Lei 9.099/95 ao crime, possibilitando a lavratura de auto de prisão em flagrante delito ao descumpridor da medida, cremos que sua intenção, por melhor que seja, dará margens para discussão.
Seria menos complicado se o legislador punisse a conduta com pena superior a 2 anos, fazendo que com que o tipo penal deixasse de ser infração de menor potencial ofensivo.
O entendimento aqui defendido é perfeitamente sustentável ao abordar que, no caso de desobediência a medida protetiva imposta (art. 24-A, da referida Lei), caberia ao delegado de polícia a lavratura de termo circunstanciado em desfavor do descumpridor, com a ressalva da outra corrente – que entende o contrário (lavratura de prisão em flagrante delito).
O argumento aqui é de que o crime não seria, propriamente dito, contra a mulher, motivo pelo qual apenas o Estado (ou a Administração da Justiça) seria vítima da infração penal, vez que o agressor descumpriu decisão conferida judicialmente. Ademais, o bem juridicamente tutelado neste crime seria a tutela da higidez das ordens judiciais emanadas do Estado, não tendo como tutela primária a mulher.
Defende-se também que o art. 24-A pode ser praticado sem externar qualquer modo de violência ou grave ameaça contra a mulher, excluindo a aplicabilidade do art. 41 da Lei 11.340/06, conforme se verifica do descumprimento da medida protetiva prevista no art. 22, V da Lei 11.343/06 (prestação de alimentos provisionais).
Passamos agora para um outro ponto complicador. Partindo do pressuposto do não cabimento da lavratura de auto de prisão em flagrante delito – com as ressalvas das 2 correntes acima – e lavrado o termo circunstanciado, caso o agente se recuse a assinar o termo de comparecimento em juízo deverá o delegado de polícia lavrar auto de prisão em flagrante delito em seu desfavor. Diante de tal situação, poderá o delegado arbitrar fiança, haja vista que a pena cominada é inferior a 4 anos?
Entendemos que, por ora, diante da previsão do § 2° do art. 24-A[3], o delegado não poderia conceder a medida ao preso. Porém, já há vozes sustentando pela inconstitucionalidade do mencionado artigo, semelhante ao que ocorreu nos crimes dos arts. 14 e 15 da Lei nº 10.826/2003, em que decidiu o Supremo Tribunal Federal julgar inconstitucional a vedação abstrata da fiança em tipos penais de médio potencial ofensivo:
“(…) IV – A proibição de estabelecimento de fiança para os delitos de “porte ilegal de arma de fogo de uso permitido” e de “disparo de arma de fogo”, mostra-se desarrazoada, porquanto são crimes de mera conduta, que não se equiparam aos crimes que acarretam lesão ou ameaça de lesão à vida ou à propriedade”. (ADI 3112/DF)”.
É cediço que a vedação abstrata dada pelo Estatuto do Desarmamento da inafiançabilidade de crimes com pena máxima de 4 anos era dirigida tanto ao juiz de direito, como ao delegado de polícia. Agora, se em crime de médio potencial ofensivo, o STF já declarou a inconstitucionalidade de tal proibição, quem dirá em no crime de menor potencial ofensivo trazido pela Lei nº 13.641/2018 que traz a inafiançabilidade abstrata relativa ao delegado de polícia?
Ainda quanto ao tema “fiança”, sabe-se que a regra no ordenamento jurídico penal brasileiro é a liberdade, podendo ser restringida antes do esgotamento das vias recursais normais (em 2ª instância), somente pela decretação de medidas cautelares pessoais restritivas de liberdade (prisão temporária e prisão preventiva).
Logo, nos parece equivocada a decisão do legislador ao possibilitar a decretação da fiança somente pelo juiz pois[4], mais que lavrar o auto de prisão em flagrante delito (ou termo circunstanciado de ocorrência), cabe ao delegado de polícia verificar a existência dos requisitos para a decretação da prisão preventiva do descumpridor da medida e, estando presentes, poderá não arbitrar a fiança e representar pela decretação da medida cautelar pessoal mais gravosa, qual seja, a prisão preventiva para garantir a execução das medidas protetivas de urgência.
CONCLUSÃO
Por fim, sem esgotar o tema, conclui-se que o grande impacto jurídico trazido pela Lei nº 13.641/2018, é o fato de que a mulher vítima de violência doméstica não mais ficará sem tutela jurídica de emergência nos casos em que o agressor descumprir medida protetiva de urgência anteriormente imposta, haja vista a nova tutela legal.
O delegado de polícia deverá, desde que observados o mencionado neste artigo, agir de imediato, dando a resposta que o Estado deseja ao descumpridor da medida e iniciando uma nova persecução penal em seu desfavor. À mulher vítima da violência, caberá o conforto de que o Estado prontamente atendeu seus anseios, fazendo valer seus direitos.
Como vimos, a nova lei não pacificou o tema relativo ao descumprimento de medida protetiva por parte do agressor, não havendo entendimento pacífico quanto ao rito procedimental a ser seguido. No entanto, independentemente da lavratura de auto de prisão em flagrante delito ou de termo circunstanciado, o descumpridor da medida deverá se preocupar com mais uma ação penal em seu desfavor, além de outras consequências derivadas.
Notas e Referências:
[1] “A mulher em situação de violência que procura a delegacia para registro de ocorrência pela simples violação da medida protetiva não logra êxito em fazê-lo, exceto se, além do descumprimento, tenha o agressor praticado novo ato de violência que configure fato típico. Para noticiar o descumprimento e o risco iminente em que se encontra, a mulher se vê obrigada a conhecer os demais atores da rota crítica institucional, no caso o Ministério Público e a Defensoria Pública da Mulher, e buscá-los diretamente, ou por orientação da delegacia de polícia, a fim de que possa noticiar a violação da determinação judicial e obter providências. O percurso é exaustivo e contribui para o desestímulo da mulher na denúncia das violências e diminui demais a confiança no sistema de justiça. De muito maior gravidade, é ainda a situação de flagrância de descumprimento, uma vez que o entendimento jurisprudencial impede a ação imediata da Polícia Militar. Ao detectar o descumprimento da medida protetiva e aproximação do agressor ou seu retorno ao lar depois de judicialmente afastado, a mulher em situação de violência aciona o serviço 190 da Polícia Militar, mas somente poderá obter a ação policial efetiva se tiver sofrido nova ameaça ou agressão física. Por certo se trata de um imenso absurdo, que demanda correção imediata da lacuna legislativa. É inconcebível esperar que a mulher deva, no calor dos fatos, submeter-se a mais um episódio de violência para obter a proteção estatal, mas é exatamente o que ocorre uma vez que a desobediência, por si, é interpretada pelos Tribunais como fato atípico, o que impede a autuação em flagrante do agressor”. [2] Art. 22. Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras: (…) V – prestação de alimentos provisionais ou provisórios. [3] § 2° Na hipótese de prisão em flagrante, apenas a autoridade judicial poderá conceder fiança. [4] Sendo que o legislador criou mais uma anomalia no ordenamento jurídico pátrio (diante da inobservância da proporcionalidade e razoabilidade na fixação de pena e tratamento procedimental), pois em crime mais grave como o de lesão corporal em âmbito doméstico (com pena de 1 a 3 anos), se admite fiança pelo Delegado de Polícia, e já no crime em estudo do art. 24-A, da Nova Lei (com pena máxima de 2 anos) não se admite a fixação de fiança pelo Delegado de Polícia.
Poderia até sob outro prisma, cogitar que no crime em estudo do art. 24-A, da Nova Lei, a reprovabilidade da conduta pelo menos no aspecto abstrato, poderia ser considerada “gravosa” (apesar de a pena não corresponder a esse raciocínio), pois o agressor estaria a descumprir uma medida estatal, como um possível desafio aos poderes estatais e ao próprio prestígio de uma ordem judicial já concedida e desobedecida – levando-se ao raciocínio de que se o agressor não respeita sequer as medidas protetivas em que lhe obrigam no âmbito doméstico, quem dirá em relação a vítima mulher.
Imagem Ilustrativa do Post: Roberto Castro_Praça dos Três Poderes_Brasília_DF // Foto de: MTur Destinos // Sem alterações
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