A indevida argumentação sobre independência de instâncias.
A conquista de um cargo público tem se tornado objetivo de vida de grande número de brasileiros, seja pela relativa estabilidade que gozam seus titulares, seja pelas dificuldades econômicas do país, ou mesmo pelo desejo de exercer uma função típica de Estado, realizando as mais variadas funções dentro de uma estrutura estatal e que não seriam possíveis na iniciativa privada.
Ao ingressar no funcionalismo público o agente passa a titularizar uma série de deveres e responsabilidades que fazem parte do desempenho das funções atinentes ao cargo público que venha a ocupar e consequentemente passa a ser fiscalizado pelos órgãos de controle e pela população, que é a principal beneficiária desses serviços.
A atuação do agente público deve ser pautada pelos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, de acordo como o que determina a Constituição Federal de 1988, bem como pelo que é determinado pelos respectivos Estatutos dos Funcionários Públicos e Leis Orgânicas dos cargos. Ocorre que algumas das vezes, esses deveres impostos aos agentes públicos são violados, o que provoca a necessidade de responsabilização do servidor pela prática desses atos. Tais responsabilizações podem ocorrer nas mais variadas áreas, tais como civil, funcional, improbidade administrativa e penal.
É certo que a prática de um fato definido como crime por parte de um agente público necessariamente acarretará a apuração administrativa dessa conduta, verificando-se a existência ou não de reflexos na sua vida funcional.
As condutas penais podem ser divididas em crimes funcionais (delicta in officium), que são aqueles praticados pelo agente público em que essa condição mostra-se necessária à configuração do delito e que de alguma forma guarde pertinência com o crime praticado, e crimes comuns, nos quais a condição de agente público é irrelevante para sua realização.
De certo os crimes funcionais acarretam uma responsabilização do agente tanto na esfera administrativa funcional, que poderá culminar na sua demissão, como na seara penal, onde será submetido a um inquérito policial e posteriormente a um processo-crime, podendo ser condenado criminalmente pela prática de seus atos. Eventualmente poderá existir uma responsabilização no campo civil, com o dever de ressarcir ou compensar os danos provocados, bem como ser submetido a uma ação de improbidade administrativa, que pode culminar em uma condenação de perda dos bens ou valores, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos por até 14 (catorze) anos, pagamento de multa civil e proibição de contratar com o poder público ou de receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo não superior a 14 (catorze) anos.
Eventualmente o agente público também poderá ser submetido a uma ação de ressarcimento ao erário, com a finalidade de se obter o pagamento de valores advindos de conduta que provocou lesões aos cofres públicos.
Como se percebe o campo de responsabilização dos servidores públicos é bastante amplo e demanda uma atenção muito grande por parte dos seus exercentes e também das Autoridades Públicas encarregadas da investigação e aplicação das sanções.
Ocorre que, em praticando um comportamento considerado crime que em nada reflita na sua atividade funcional, não deverá ocorrer punição no âmbito administrativo. Todavia, é muito comum que a Administração promova a apuração de responsabilidade e punição do agente, quando há a sua absolvição na esfera criminal, afirmando que somente haveria a extinção da punibilidade do agente por uma decisão criminal e consequente comunicação das instâncias penal e administrativa em casos de absolvição em que fosse reconhecida a negativa de autoria ou inexistência de fato.
É certo que há a invocação do adágio de que as esferas administrativa, civil e penal são independentes e que por isso haveria a análise de cada fato isoladamente em cada âmbito.
Todavia, não é correta tal alegação e a punição de servidores públicos nessas hipóteses é uma medida ilegal, caracterizando-se em abuso por parte da Administração Pública.
Em alguns estatutos de servidores públicos é há a previsão de que a prática de fatos criminais estranhos à função pública não acarretam a responsabilidade administrativa do servidor. Porém, tais previsões não são tão comuns.
Todo ato que acarreta responsabilidade do servidor público é calcado em uma ilicitude, ou seja, um ato que é contrário á lei em sentido amplo. Por essa razão que o agente é punido, isto é, pela prática de um ato que contraria a lei ou determinações legais ou regulamentares (portarias, atos normativos, etc.). Deixe bem claro que a ilicitude é única, sendo impossível se falar que para cada tipo de responsabilidade haveria um tipo de ilicitude. O que existe é uma sanção diferente, mas não elementos distintos.
Frise-se que o conceito de ilicitude é unívoco, significando a contrariedade do ato ou comportamento àquilo que é determinado por lei.
Assim, se a punição de um ato é baseada, dentre outros elementos, em uma ilicitude, esta deixa de existir quando da absolvição de um agente público por um fato criminal. É que a análise dos elementos penais é perfunctória, demandando um maior aprofundamento dos elementos do tipo penal e do crime pelo juiz de direito, de modo que havendo o trânsito em julgado da decisão, esta faz coisa julgada em todas as esferas, não cabendo uma análise diferente por parte de outras autoridades, sob pena de violação da coisa julgada e de ilegalidades contra o agente público.
Se o crime é constituído de fato típico, ilicitude e culpabilidade, é certo que a sentença absolutória afasta ou reconhece a ausência desses elementos. Logo, não há como se afirmar que a ilicitude, que é única para quaisquer tipos de responsabilidades (penal, civil, improbidade administrativa e funcional) e que foi afastada sua incidência pela decisão judicial, permita uma análise e valoração por outros campos do direito, em especial a seara administrativa e civil.
Tanto é assim, que o Supremo Tribunal Federal elaborou a súmula 18, reconhecendo tal situação:
Pela falta residual, não compreendida na absolvição pelo juízo criminal, é admissível a punição administrativa do servidor público.
À grosso modo, reconheceu o STF que em havendo a análise judicial da conduta criminosa, não se admitirá a punição por este mesmo fato na esfera administrativa. Admite-se tão somente a investigação e punição administrativa pela falta residual, isto é, por aqueles fatos que não foram compreendidos pela análise criminal. E assim deveria ser, pois se não analisado judicialmente, deverá ser valorado por outros campos jurídicos.
Mesmo diante da existência desse entendimento sumulado pelo Supremo Tribunal Federal, é bastante comum a punição de agentes públicos pelos mesmos fatos pelos quais foram absolvidos na esfera judicial, gerando demissões ilegais.
Essa conduta por parte de Administração Pública acarreta ilegalidade e abuso de poder, violando diversos princípios da Administração Pública e onerando o erário, na medida em que esse agente busca a intervenção do Poder Judiciário, obtendo sua reintegração aos quadros da Administração e recebimento de valores desde o seu desligamento ilegal. Ora, se essa demissão é ilegal, não poderia ter produzido efeitos e, a anulação deste ato ilegal restabelece a situação inicial, qual seja, a continuidade da prestação de serviços por parte deste servidor ilegalmente desligado de suas funções.
Entretanto, há uma ânsia punitiva, mormente quando se trata de servidores públicos, que para acalmar os ânimos da sociedade, é utilizado como exemplo de aplicação de uma falsa justiça.
Mesmo diante do entendimento sumulado pelo Supremo Tribunal Federal, há um desrespeito constante e aplicação de punições nos mais variados campos sob a rubrica de que as esferas são independentes entre si.
Não há quaisquer dúvidas acerca da exclusão de responsabilidade quando decorrente de reconhecimento na esfera criminal de que: 1 – o fato é inexistente, posto que inexistindo o comportamento ou a situação alegada é impossível a imputação a alguém; 2- negativa de autoria, de modo que sendo provado que o agente apontado não é o autor daquele fato, não teria cabimento sua punição.
O problema ocorre quando o Poder Judiciário se vale de outros fundamentos para a absolvição no âmbito criminal, sendo o mais comum deles a insuficiência de provas. Tal fundamento é baseado em questões probatórias. Entretanto, da mesma forma que em outras causas de absolvição, o Poder Judiciário deve fazer a análise dos elementos do crime (tipicidade, ilicitude e culpabilidade) antes de analisar a questão probatória. É fato que se estiverem presentes esses elementos, poderá ocorrer a responsabilização na área penal. Contudo, em caso de ausência ou estado de dúvidas sobre sua ocorrência, haverá a absolvição do agente.
A produção probatória e a análise dos fatos no âmbito criminal acontece de forma aprofundada, tendo o juiz um maior contato com os fatos e provas produzidas e realizando uma análise exauriente, fazendo com que a conduta seja comprovada e provoque a condenação, ou não seja demonstrada, acarrete a absolvição.
As provas produzidas relacionam-se aos elementos do crime, seja tipicidade, ilicitude ou culpabilidade. Em havendo dúvidas sobre esses elementos, como pode a Administração Pública valorá-los de forma diversa? E mais, como pode em caso de dúvidas sobre esses elementos no âmbito administrativo e funcional, servir de fundamentação para uma condenação administrativa?
No campo da improbidade administrativa a lei 8429/92, com as alterações promovidas pela lei 14.230/21, exige a demonstração de elementos mais específicos por parte do autor da ação, o que pode ser buscado por meio de um inquérito civil ou outros procedimentos. Mas o mesmo não ocorre no campo funcional.
É notório que a punição funcional dos agentes públicos após a absolvição criminal acarreta a violação a diversos princípios da Administração Pública e também à presunção de inocência, prevista expressamente na Constituição Federal e na Convenção Americana de direitos humanos, da qual o Brasil é signatário.
Sem dúvidas, poderá a conduta residual, isto é, aquela não compreendida na apuração criminal, ser analisada pelos órgãos de fiscalização e controle. Mas aquelas condutas que são objeto de análise em processo judicial penal estarão protegidas pela coisa julgada, sendo incabível a sua revaloração por autoridades administrativas, sob pena de bis in idem e decisões conflitantes eivadas de ilegalidade. Não à toa que é grande o número de ações de reintegração de servidores que são providas no país, dado a nulidade desse tipo de punição.
E como fica a situação da autoridade administrativa que promove uma aplicação de pena funcional ilegal que posteriormente é anulada pelo Poder Judiciário? Deverá ser responsabilizado nas esferas penal, de improbidade administrativa e funcional?
Uma coisa é certa: todo agente público que absolvido criminalmente venha a ser punido em outras áreas pelos mesmos fatos deve buscar um advogado para fazer cessar a ilegalidade, buscando o restabelecimento da justiça por meio dos órgãos do Poder Judiciário.
Referências Bibliográficas
BANDEIRA DE MELLO, Oswaldo Aranha. Princípios Gerais de Direito Administrativo. Vol. I, Rio de Janeiro: Forense, 1974.
Bitencourt, Cezar Roberto. Direito Penal das Licitações. 2ª ed., São Paulo: Saraiva Educação, 2021.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 23.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 14ª ed., São Paulo: Atlas, 2002.
Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. 6ª ed., São Paulo: Saraivajur, 2017.
JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro.16ª ed. atual., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991.
MELLO, Celso A. Bandeira de. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3a.ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2000.
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2 ed., São Paulo: Saraiva, 2008.
Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, Brasília, DF: Casa Civil, Subchefia para Assuntos jurídicos. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8429.htm
_______Lei nº 8.112/90, de 18 de abril de 1991. Brasília, DF: Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8112cons.htm
_______Lei nº 14.230 de .25 de outubro de 2021, Brasília, DF: Casa Civil, Subchefia para Assuntos jurídicos. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12683.htm.
_______Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Brasília, DF: Casa Civil, Subchefia para Assuntos jurídicos. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689.htm
_______Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Brasília, DF: Casa Civil, Subchefia para Assuntos jurídicos. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm