A Lei 14.321/22 inclui na Lei de Abuso de Autoridade (Lei 13.869/19) o artigo 15 – A com “nomen juris” de “Violência Institucional”.
Criminaliza-se, em suma, a chamada “vitimização secundária”, que provém das respostas inadequadas formais e informais obtidas pela vítima, as quais acabam produzindo novos danos para além daquele já sofrido com a prática criminosa.
Como bem aduz Moraes, diversamente dos demais tipos penais da Lei de Abuso de Autoridade, o artigo 15 – A não se dirige à proteção de investigados ou réus contra eventuais arbítrios estatais, mas volta-se para a tutela dos interesses de vítimas e testemunhas.
A legislação parece dividir o sujeito passivo em duas categorias, a saber: a “vítima de infração penal” (significando que poderá ser vítima de crimes violentos ou não e até de contravenções) e a “testemunha de crimes violentos” (designando uma restrição que se refere apenas às testemunhas de crimes violentos, o que afasta eventuais testemunhas de contravenções penais e de crimes não violentos da proteção legal). Sinceramente, não se vê motivação idônea para isso, mas foi o que o legislador fez. Entende-se que o correto seria abranger tanto vítimas como testemunhas de qualquer infração penal sem a distinção que foi levada a efeito. Contudo, “legem habemus” e não será possível, por força do “Princípio da Legalidade”, abranger no dispositivo eventuais testemunhas de contravenções e crimes não violentos, ainda que sejam submetidas às agruras descritas no tipo. Embora Moraes afirme que a lei não se restringe à violência física, podendo abranger a palavra num sentido aberto ou amplo (v.g. violência moral, patrimonial, ainda que relativa a crimes patrimoniais sem violência física ou grave ameaça etc.), não parece ser essa a melhor interpretação. Sempre que o legislador se refere a violência, salvo em legislações em que a conceitua especialmente (v.g. Lei 11.340/06), o termo se refere a infrações penais em que há o elemento da violência física ou ao menos da grave ameaça (v.g. roubo, extorsão, estupro, homicídio, lesões corporais etc.). Pretender extrapolar esse tradicional significado legal é violar a “legalidade estrita”. O que parece certo é que a violência não precisa estar presente em concreto, mas compor a descrição típica em abstrato do crime enfocado. Por exemplo, o roubo é um “crime violento”, embora possa ser praticado com emprego de violência física, mas também, em algum caso concreto, somente mediante grave ameaça. O roubo não deixa de ser um “crime violento” em acordo com a dicção típica do artigo 15 – A porque, num caso concreto, em que se lida com uma vítima ou testemunha específica, o fato se deu apenas por meio de grave ameaça. A descrição típica do crime de abuso parece se referir à qualidade violenta do crime em abstrato, não necessariamente em concreto. O mesmo se pode afirmar, por exemplo, a respeito do crime de “Estupro de Vulnerável”, o qual pode se dar mediante violência ou grave ameaça (tanto é que existem qualificadoras pelas lesões graves ou morte), como sem essas práticas num caso concreto. Ocorre que abstratamente trata-se de um crime violento por natureza, que é o que basta para as exigências típicas contidas no artigo 15 – A em estudo.
A conduta consiste em “submeter” tais pessoas a “procedimentos desnecessários, repetitivos ou invasivos”. Tratam-se, obviamente, de elementos normativos do tipo, os quais deverão ser apreciados em cada caso concreto para aferir suas condições de desnecessidade, repetição ou invasão abusivas. A redação é sofrível, não apresentando nenhuma determinação ou segurança jurídica. Parece que quaisquer procedimentos que se pretenda rotular de ilícitos deverão ser “desnecessários”. As palavras “repetitivos” ou “invasivos” somente podem ter sentido quando o procedimento também for desnecessário, violando a razoabilidade. Não será abusiva, por exemplo, a realização reiterada de reconhecimentos pessoais em casos em que isso se justificar, como, por exemplo, pela multiplicidade de supostos autores ou suspeitos que vão sendo identificados pela Polícia. Um exame de corpo de delito de conjunção carnal e ato libidinoso realizado no IML por requisição é extremamente “invasivo”, mas se justifica plenamente, sob pena de impedir a comprovação da materialidade delitiva e de perder oportunidades de coleta de provas capazes de determinar a autoria da infração. O grande problema estará em determinar quando esses procedimentos a que a lei se refere são repetitivos e invasivos de forma irrazoável ou são, de plano, desnecessários. Somente em casos teratológicos é que se poderá ter qualquer segurança jurídica a respeito, pois em outras situações o poder discricionário da autoridade responsável pela investigação ou processo não pode ser questionado, sob pena de engessar a persecução penal e fazer grassar e impunidade em prejuízo da própria vítima, de testemunhas e, enfim, da sociedade em geral. Não se olvide que a Lei de Abuso de Autoridade veda a imputação do chamado “Crime de Hermenêutica”, de forma que o entendimento do agente público acerca da necessidade de diligências, ainda que divergente de outrem, não serve, por si só, para a configuração de infração penal, nos estritos termos do artigo 1º., § 2º., da Lei 13.869/19. Neste sentido:
“De igual sorte, também não caracteriza o delito a divergência interpretativa da lei ou na avaliação fática e probatória, sobretudo em relação ao juízo e à decisão acerca da estrita necessidade de promover os procedimentos pela autoridade responsável, diante da expressa vedação ao ilícito de hermenêutica (Lei 13.869/19, artigo 1º, § 2º)”.
Além disso, tais procedimentos, segundo a dicção do tipo, devem ser aptos a levar a vítima ou testemunha a “reviver, sem estrita necessidade”, “a situação de violência” ou “outras situações potencialmente geradoras de sofrimento ou estigmatização”. Novamente se vê a importância crucial do elemento objetivo da “necessidade”. Em sendo o procedimento necessário para a apuração criminal, não há falar em abuso, ainda que haja certo constrangimento, sofrimento ou reminiscência da vítima ou testemunha. Há um ditado popular que ensina ser impossível “fazer um omelete sem quebrar os ovos”. Efetivamente, a investigação criminal e o respectivo processo podem ser, de certa forma, danosos a vítimas e testemunhas, mas há certo grau de danosidade que é inevitável, a não ser que simplesmente se desista da persecução penal.
É certo que se pode acatar a concepção de Caruth sobre o trauma “como a repetição do sofrimento do acontecimento”, de forma que ele “não é experienciado como uma mera repressão ou defesa, mas como um atraso temporal que leva o indivíduo para além do choque primeiro”. Não obstante, muitas vezes a apuração criminal não terá como se desvencilhar de sua característica traumática para os envolvidos.
Novamente a dicção legal é indeterminada e certamente violadora do limite imposto pela “legalidade estrita”.
Note-se que o crime do “caput” não deveria ser próprio, muito menos funcional, de forma que um advogado, por exemplo, deveria poder incidir na conduta. Contudo, no diz respeito aos causídicos, somente o Defensor Público será abrangido, já que o artigo 1º. c/c artigo 2º., da Lei 13.869/19 restringe a aplicação de todos os crimes desse diploma a “agentes públicos”, tornando-os, sem exceção, “crimes próprios e funcionais”. Para que advogados fossem alcançados seria necessário que houvesse no dispositivo em comento uma regra de exceção ao determinado nos artigos 1º. e 2º., da Lei de Abuso de Autoridade, uma vez que os referidos profissionais liberais exercem certamente um “munus” público, mas não são “agentes” ou “funcionários públicos”, nem mesmo para fins penais. Portanto, ao advogado somente restará eventual responsabilização administrativo – disciplinar (deontológica), civil e criminal apenas no que se refere, conforme o caso, ao crime de “Constrangimento Ilegal” (artigo 146, CP). Esta certamente não é a melhor formatação do referido tipo penal, que deveria alcançar os advogados, mas a outra conclusão não se pode chegar, infelizmente, diante do regramento restrito dado ao sujeito ativo dos crimes de abuso de autoridade pela Lei 13.869/19.
É preciso ter em mente ainda que a conduta, para ser abusiva, deverá satisfazer o elemento subjetivo constante dos crimes de abuso de autoridade, conforme consta do artigo 1º. , § 1º., da Lei 13.869/19 (“animus abutendi”). Não há figura culposa.
Toda essa redação aberta, se não for adequadamente limitada pelo bom – senso e pela pesquisa do elemento subjetivo exigido, pode tornar a persecução penal algo inexequível. Como seria possível, por exemplo, realizar uma reprodução simulada dos fatos, com a participação da vítima e testemunhas, sem que isso repita a cena do crime e lhes traga o reviver da violência ou outras situações constrangedoras? É claro que não se pode pretender fazer a reconstituição de um estupro, por exemplo. Ora, isso não somente constrangeria indevidamente a vítima, mas violaria até a moralidade, o pudor e a razoabilidade minimamente exigíveis na condução de uma apuração criminal. No entanto, em outros casos como roubos, tentativas de homicídio etc., isso não pode simplesmente ser impedido por receio das autoridades em incidirem em suposto abuso.
Há que trilhar o caminho do bom – senso, também prestando atenção no fato de que a vítima e testemunhas não podem ser submetidas a tratamentos degradantes, por vezes invertendo os papeis daqueles envolvidos em um episódio criminal. Tal como alerta Shakespeare, no poema “O Estupro de Lucrécia”:
“Homem algum acuse a flor que deteriora,
Mas censura o duro inverno que mata a flor.
Não quem é devorado, e sim quem devora,
Merece culpa”.
Afinal, quando se fala em humanização do Processo Penal, acenando com todo o sistema protetivo dos “Direitos Humanos”, isso induvidosamente não se aplica, com exclusividade, àqueles que sofrem a persecução penal, mas também a vítimas e testemunhas.
O § 1º. do artigo 15 – A da Lei 13.869/19 com nova redação dada pela Lei 14.321/22, apresenta mais uma conduta criminosa, desta feita um crime omissivo próprio. Além de omissivo próprio, o crime é funcional (próprio), pois que tem como sujeito ativo necessariamente um “agente público” que deixa de impedir que terceiro “intimide” a vítima de crimes violentos, ocasionando sua “revitimização”, “sobrevitimização” ou “vitimização secundária”. Nesse caso, o agente (“rectius” omitente) não pratica a intimidação, mas se queda inerte diante dela quando tinha o dever de intervir. O verbo típico é “permitir”, indicando uma omissão criminosa. Aqui há uma conduta independente e diversa do tipo penal descrito no “caput”, somente a pena aplicável é a mesma do “caput”, mas com o acréscimo de dois terços. Não se trata de simples causa de aumento de pena, mas de uma conduta específica. Note-se que o intimidador incide em infração mais grave, qual seja, “Coação no Curso do Processo” (artigo 344, CP). Não se compreende por que não é previsto como crime no parágrafo em estudo também a omissão perante a intimidação da testemunha. Ademais, não se compreende, conforme já exposto, por que testemunhas de contravenções e crimes não violentos ficam de fora da proteção legal. Mais ainda, no § 1º., há menção a “vítimas de crimes violentos” e não “infrações penais” em geral como no “caput”. Dessa forma, também, inexplicavelmente, ficam de fora da proteção as vítimas de crimes não violentos e contravenções penais. De qualquer forma, essa omissão de agente público, com relação a testemunhas ou vítimas de infrações penais não violentas, certamente poderá ser tipificada como “Prevaricação” (artigo 319, CP), sempre dependendo de elemento subjetivo específico também presente nesse dispositivo do Código Penal, e no caso do artigo 15 – A, § 1º., conforme disposto no artigo 1º., § 1º., da Lei de Abuso de Autoridade.
Agora, se o próprio agente público é o responsável pela intimidação da vítima de crimes violentos, gerando indevida vitimização, a pena é aplicada em dobro, passando de detenção, de 3 meses a 1 ano, e multa, a detenção de 6 meses a 2 anos, e multa. O crime previsto nesse parágrafo também se descola do “caput”, tratando-se de crime próprio de agente público, bem como sendo seu verbo “intimidar” e não “submeter” a vítima a algum procedimento. Neste caso, sendo o próprio agente público o intimidador surge um problema com relação à distinção entre este dispositivo em estudo e o crime de “Coação no Curso do Processo” (artigo 344, CP). Não é possível resolver a situação por meio do “Princípio da Especialidade”, aplicando o artigo 15 – A, § 2º., da Lei de Abuso de Autoridade invariavelmente ao agente público que intimida a vítima. Isso porque a pena, ainda com o aumento imposto seria a metade daquela prevista para a “Coação no Curso do Processo”, o que não é proporcional. Nessa situação, um coator que não é agente público teria tratamento mais gravoso do que um funcionário público, o qual tem maiores obrigações perante a administração da justiça. A compreensão somente poderia ser a de que a intimidação, para ser aplicado o artigo especial da Lei de Abuso de Autoridade, afastando o artigo 344, CP, não deve ter por motivação a finalidade específica de “favorecer interesse próprio ou alheio”, exigido para a coação no curso de processo. Entretanto, essa solução também não satisfaz, porque o dolo específico dos crimes de abuso de autoridade também exige essa espécie de motivação da conduta. Parece que dificilmente será aplicável o § 2º. em estudo, ficando geralmente absorvido pelo crime mais gravoso do artigo 344, CP, de modo a ter a característica de crime subsidiário tácito. Sua aplicação parece somente poder ocorrer quando a “intimidação” não for produzida mediante “violência ou grave ameaça”, conforme consta do tipo penal do artigo 344, CP. A intimidação que levará o agente público a responder pelo artigo 15 – A, § 2º., da Lei 13.869/19 e não pelo artigo 344, CP, será aquela bem mais sutil, consistente em alguma admoestação, advertência, insinuação ou até mesmo gracejo inconveniente (passivo – agressivo), capaz de constranger a vítima de alguma forma, o que se afigura de pequena incidência prática. Além do mais, grande parte de advertências, admoestações etc. podem ser justificadas como, por exemplo, para estabelecer ou restabelecer a ordem em um cartório criminal policial ou em juízo, ou para advertir a vítima sobre possível crime de “Denunciação Caluniosa” (artigo 339, CP). Novamente não se compreende a limitação legal às vítimas de crimes violentos, deixando demais vítimas e testemunhas a descoberto.
A verdade é que o tipo penal em estudo é o correspondente material ou penal das determinações de natureza formal ou processual penal levadas a termo pela Lei 14.245/21, apelidada de “Lei Mariana Ferrer”. Tal legislação já criou um imbróglio terrível para o exercício da ampla defesa e do contraditório e ainda mais para a plenitude de defesa nos casos de Júri. Agora, esse novo tipo penal indeterminado é outro fruto envenenado oriundo da influência midiática sobre o poder legiferante.
REFERÊNCIAS
BERISTÁIN, Antonio. Nova Criminologia à luz do Direito Penal e da Vitimologia. Trad. Cândido Furtado Maia Neto. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000.
CARUTH, Cathy. Psychoanalysis, Culture, and Trauma. American Imago. Volume 48, Número I, p. 1 – 12, 1991.
FELMAN, S. , LAUB, D. Testemony: Crisis of Witnessing in Literature, Psychoanalysis, and History. New York: Routledge, 1992.
MORAES, Rafael Francisco Marcondes de. Lei 14.321/2022: a criminalização da violência institucional. Disponível em https://www.conjur.com.br/2022-abr-10/rafael-moraes-criminalizacao-violencia-institucional , acesso em 28.05.2022.
REZENDE, Guilherme Carneiro de. O Direito Humano da Vítima a um Processo Penal Eficiente. Curitiba: Juruá, 2021.
SHAKESPEARE, William. O Estupro de Lucrécia. Disponível em https://shakespearebrasileiro.org/o-estupro-de-lucrecia-completo/ , acesso em 28.05.2022.
Autor: Eduardo Luiz Santos Cabette, Delegado de Polícia Aposentado, Mestre em Direito Social, Pós – graduado em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia, Medicina Legal e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na pós – graduação do Unisal.