autoridade do povo.
Cabeça-de-ponte da justiça.
Armado de coragem e discernimento.
Em qualquer lugar. Em todos os momentos [1].
Há 180 anos, a Lei 261, de 3 de dezembro de 1841, marco histórico da carreira de delegado de polícia, reformou o Código de Processo Criminal de 1832 e instituiu os chefes de polícia, escolhidos entre desembargadores e juízes de direito, aos quais vinculavam-se delegados e subdelegados [2].
Reflexo da gênese imbricada à magistratura, o delegado de polícia conserva funções judiciais, mormente a avaliação jurídica de captura sob suspeita de flagrante delito, o arbitramento de fiança e a correlata expedição de alvará de soltura (CPP, artigos 304 e 322).
No âmbito paulista, a carreira de delegado de polícia é privativa de bacharéis em ciências jurídicas desde a Lei 979/1905, com provimento, hoje, mediante concurso público de provas e títulos. Constitui carreira jurídica qualificada pela capacitação policial, cujo ingresso requisita graduação em Direito e submissão a curso de formação técnico-profissional nas Academias de Polícia Judiciária. Titular da investigação criminal, possui autonomia intelectual para interpretar o ordenamento e decidir, fundamentadamente, com imparcialidade e expressão do pensamento a partir dos saberes jurídicos.
O entendimento jurídico motivado do delegado de polícia, inerente ao exercício do poder-dever de investigar, foi positivado em Constituições Estaduais sob a designação “independência funcional”, acompanhando prerrogativa dos demais atores do processo penal, responsáveis por acusar, defender e julgar, na repartição constitucional de poderes explícitos para contenção intersubjetiva.
Todavia, em controle abstrato, o STF entendeu inconstitucionais previsões de Cartas Estaduais e da Lei Orgânica do Distrito Federal que conferiam a citada independência funcional aos delegados de polícia, por supostos vícios materiais diante da subordinação administrativa das Polícias Civis aos governadores e das atribuições ministeriais de controle externo da atividade policial e da requisição de instauração de inquérito policial e de diligências. A Corte, contudo, ressalvou e reconheceu a existência de “independência técnica” dos profissionais de polícia judiciária no desempenho das funções, sem interferências ilegítimas, para análise e interpretação de vestígios e elementos de convicção, à luz dos conhecimentos técnicos e da experiência laboral [3].
Destarte, ainda que se intitule “independência técnica” (ou qualquer outra nomenclatura) e não “independência funcional”, trata-se de prerrogativa imanente e pressuposto de atuação dos delegados de polícia, decorrente do sistema constitucional vigente e relativa ao poder-dever decisório da autoridade policial na investigação criminal [4].
O delegado de polícia possui independência técnica para as decisões jurídicas motivadas próprias da etapa extrajudicial do processo penal, com vistas a uma hermenêutica alicerçada na integridade e na coerência do Direito [5], para uma legítima e epistemológica reconstrução histórica dos fatos apurados.
Como é cediço, referido convencimento jurídico fundamentado do delegado de polícia abrange as determinações desde o limiar da apuração das notícias de supostas práticas delitivas, na verificação da procedência das informações para a instauração ou não de inquérito policial (CPP, artigo 5º, §3º e Lei 13.869/19, artigo 27) [6], passando pelas diligências no curso das investigações, nas quais realiza um juízo de prognose [7], consubstanciado em um olhar para frente diante do angariado, objetivando a verdade validamente atingível, na condução imparcial e no rumo das providências adotadas, por meio de raciocínio decisório e averiguação das hipóteses fáticas e respectivas premissas [8].
Cada evento com relevância penal apresenta circunstâncias peculiares, com uma série de variáveis, e a investigação criminal precisa ser dirigida de acordo com a ordem cronológica com que os elementos são obtidos, seguindo a intelecção técnico-jurídica e o tirocínio profissional da autoridade policial, responsável pela preservação e produção probatória no momento apropriado, conforme parâmetros normativos para proficuidade dos trabalhos desenvolvidos.
No decorrer do procedimento investigatório criminal, o delegado de polícia perscruta o contexto fático ouvindo pessoas, requisitando exames em locais, objetos e indivíduos, apreendendo bens e documentos, representando por medidas cautelares, determinando, entre outras, as diligências do rol exemplificativo do artigo 6º do CPP, cada qual promovida segundo normas ou fontes correspondentes, das quais a autoridade investigante se vale, balizada pela dignidade humana e pelas garantias do devido processo legal.
Ademais, o delegado de polícia também possui liberdade de convicção motivada em sede de juízo de diagnose [9], cuidando-se de um olhar para trás, a considerar dados e circunstâncias verificadas até então, que compreende as classificações legais nas adequações típicas e enquadramentos jurídicos em atos de polícia judiciária, como boletins de ocorrência, termos circunstanciados, decisões de indiciamentos (tanto as atreladas a auto de prisão em flagrante quanto as formalizadas no curso de inquérito iniciado por portaria) ou relatórios finais [10].
Frise-se que a decisão jurídica fundamentada é intrínseca à autoridade policial operadora do Direito para exercer suas funções, na atividade-fim, de acordo com o que seu discernimento reputar legalmente respaldado e justo, sem submissão hierárquica, a qual restringe-se às matérias de índole administrativa (atividade-meio), como a gestão institucional, a escolha de cargos de chefia ou a divisão do volume de demandas, mas não quanto aos atos decisórios e ao pensamento jurídico na condução das investigações policiais [11].
Cabe enfatizar que o convencimento jurídico preconiza que a atuação da autoridade hermeneuta não fica ao arbítrio desta, pois se sujeita não isoladamente à sua consciência, mas antes e, sobretudo, aos comandos da Constituição Federal e das normas em sentido amplo, razão pela qual exige transparência para controle mediante respectiva motivação. A aplicação do Direito deve seguir os três períodos que marcam as palavras da lei, considerando tanto a letra expressa do texto legal quanto a sua exegese segundo a força que dela se extrai e, ainda, ajustada ao seu fim social, numa busca incessante pelo exato espírito da norma [12].
Como se observa, a exteriorização da convicção jurídica deve estar escorada no ordenamento, o que reclama manifestações fundamentadas do delegado de polícia, a expor as premissas fáticas e jurídicas que as ultimaram, observadas durante a rotineira subsunção dos fatos às normas, na apreciação de legalidade, de convencionalidade e de constitucionalidade [13] ao presidir investigações criminais.
Logo, ao mandatário do Executivo é vedado imiscuir-se nos atos decisórios da autoridade investigante, de modo a obstar intromissões espúrias, exploração política e desvirtuamento das instituições de polícia judiciária como meros órgãos de governo (não de Estado) e ferramentas de privilégios, perseguições ou desmandos antidemocráticos.
A autoridade policial não é figura autômata ou mera ratificadora da captura de suspeitos. Carreira jurídica e de Estado, cabe ao delegado de polícia não o poder, mas o dever de atuar como intérprete da norma penal, de dizer o Direito em primeiro lugar no caso concreto [14] e realizar juízos positivos e negativos de tipicidade, de ilicitude e de culpabilidade, atento às orientações doutrinárias e jurisprudenciais. Ao escrutinar fatos e formar seu convencimento jurídico, se reputar ausentes os requisitos do estado flagrancial e da fundada suspeita, não decretará a custódia, sem prejuízo da instauração de inquérito policial via portaria para apurar o episódio [15]. Não autuar em flagrante, justificadamente, não admite, sequer em abstrato, injusta censura externa ou interna que cogite prevaricação ou qualquer irregularidade, por manifesta ausência de dolo no estrito cumprimento do dever decisório legal.
Rememore-se que o convencimento jurídico motivado rechaça o descabido e pernicioso ilícito de hermenêutica [16] em relação às decisões das autoridades policiais, salvo, por óbvio, má-fé, excesso ou teratologia, posicionamento consolidado na Lei de Abuso de Autoridade, ao assentar que a divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura crime (Lei 13.869/19, artigo 1º,§2º), corroborada pela Lei 8.429/92, ao estipular que não caracteriza improbidade administrativa ato decorrente de discordância interpretativa da lei (artigo 1º, §8º) [17].
A independência técnico-jurídica, mais que prerrogativa profissional da autoridade investigante, constitui garantia dos cidadãos contra arbitrariedades, sedimentada pelos compromissos constitucionais que suplantam visão retrógrada e preconceituosa acerca do entendimento exarado pelo delegado de polícia, como primeiro exegeta dos casos penais. Hierarquia de pensamento, só na ditadura! [18].
Confira em https://www.conjur.com.br/2022-mar-15/opiniao-independencia-tecnico-juridica-delegado-policia
[1] ROSA, Paulo Della. Nobre majura!. Santos, 2015. [2] MORAES, Bismael Batista de. Direito e polícia: uma introdução à Polícia Judiciária. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1986, p.91. A Lei 13.567/17 instituiu o 3 de dezembro como dia do Delegado de Polícia. [3] ADI 5.522 (j.18/02/22), em relação à Constituição Paulista, ADI 5.520 (j.06/09/19) sobre a Carta Catarinense e ADI 5.579 (j. 21/06/21) afeta à Lei Orgânica Distrital, que afirmou a independência técnica das autoridades policiais. Os equívocos dos alegados vícios materiais foram alertados: LESSA, Marcelo de Lima; MORAES, Rafael Francisco Marcondes de; SAYEG, Ronaldo. Independência funcional do delegado e Polícia Judiciária de Estado. Consultor Jurídico, São Paulo, 16 dez.2020. Disponível em: <www.conjur.com.br/2020-dez-16/opiniao-independencia-delegado-policia-judiciaria>. [4] ZANOTTI, Bruno Taufner; SANTOS, Cleopas Isaías. Delegado de polícia em ação: teoria e prática no Estado Democrático de Direito. Salvador: JusPodivm,2021, p.132. [5] BRENE, Cleyson. Ativismo policial: o papel garantista do delegado de polícia. Salvador: JusPodivm, 2019, p.151. [6] LESSA, Marcelo de Lima; MORAES, Rafael Francisco Marcondes de; GIUDICE, Benedito Ignácio. Nova lei de abuso de autoridade. São Paulo: Academia de Polícia, 2020, p.125. Quanto ao tema, Enunciado 10 sobre a Lei 13.869/19, da Academia de Polícia paulista: Quando a notícia de fato não viabilizar instauração de procedimento investigatório, o delegado de polícia responsável determinará a verificação da procedência das informações a título de investigação preliminar sumária, em atenção ao artigo 5º, §3º, do CPP, sem prejuízo de ulterior acautelamento fundamentado enquanto não obtidos elementos indiciários que denotem justa causa para deflagrar o procedimento legal cabível. [7] HOFFMANN, Henrique. Juízos de prognose e diagnose do delegado são essenciais na investigação. Consultor Jurídico, São Paulo, 9 ago.2016. Disponível em: <www.conjur.com.br/2016-ago-09/academia-policia-juizos-prognose-diagnose-sao-essenciais-investigacao>. [8] GIAMPAOLI, Anderson Pires. Do raciocínio decisório da autoridade policial na primeira etapa de uma persecução penal acusatória e garantista. SÃO PAULO (Estado). Arquivos da Polícia Civil — vol.57. São Paulo: Academia de Polícia, 2021, p.83-102. [9] HOFFMANN, Henrique. op.cit. [10] MORAES, Rafael Francisco Marcondes de. Prisão em flagrante delito constitucional. Salvador: JusPodivm, 2020, p.245-254. Nesse sentido, Enunciado 1 sobre a Lei 13.869/19 da Acadepol de São Paulo: Ao delegado de polícia é garantida autonomia intelectual para interpretar o ordenamento e decidir, de modo imparcial e fundamentado, quanto ao rumo das diligências adotadas e quanto aos juízos de tipicidade, ilicitude, culpabilidade e demais avaliações de caráter jurídico imanentes à presidência da investigação criminal. [11] COELHO, Emerson Ghirardelli. Investigação criminal constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2017, p.79. Nessa direção, o Enunciado 9 sobre a Lei 12.830/13 da Acadepol paulista: Descabe instauração de procedimento administrativo de caráter disciplinar que tenha por objetivo único a análise relativa à decisão de natureza exclusivamente jurídica adotada pelo delegado de polícia e fundada em sua livre convicção jurídica motivada, subsistindo, todavia, a exigibilidade de explicitação da motivação fática e jurídica informadora daquele convencimento. Na mesma linha, o artigo 28 da LINDB (Decreto-lei 4.657/42) esclarece que o agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro. [12] ALMEIDA, José Raul Gavião de. As palavras da lei. 1ª Antologia — Academia Jundiaiense de Letras Jurídicas. Jundiaí: In House, 2008, p.76-78. [13] SAYEG, Ronaldo. Inquérito policial democrático: uma visão moderna e contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019, p.78; BARBOSA, Ruchester Marreiros; SANNINI, Francisco. Delegado de polícia deve realizar controle de constitucionalidade. Consultor Jurídico, São Paulo, 22 dez. 2020. Disponível em: <www.conjur.com.br/2020-dez-22/delegado-policia-realizar-controle-constitucionalidade>. [14] MORETZSOHN, Fernanda; BURIN, Patrícia. A prática de topless configura crime? Consultor Jurídico, São Paulo, 11 fev.2022. Disponível em: <www.conjur.com.br/2022-fev-11/questao-genero-pratica-topless-configura-crime>. [15] MORAES, Rafael Francisco Marcondes de. op.cit., p.151-180. Nessa posição, Enunciado 2 sobre a Lei 13.869/19, da Academia de Polícia paulista: A decretação da prisão em flagrante pelo delegado de polícia mediante lavratura de auto prisional, como espécie de decisão de indiciamento, demanda avaliação do requisito temporal, previsto nas hipóteses do artigo 302 do CPP, assim como do requisito probatório, consubstanciado na fundada suspeita do §1º do artigo 304 do CPP, sem prejuízo da apuração dos fatos em sede de inquérito policial instaurado via portaria na ausência dos aludidos requisitos legais. [16] LEITÃO JR., Joaquim. O delegado de polícia pode cometer crime de hermenêutica? In.: LEITÃO JR. Joaquim; HOFFMANN, Henrique (Org.). Tratado contemporâneo de polícia judiciária. Cuiabá: Umanos, 2019, p.33-38; BADARÓ, Gustavo; BREDA, Juliano (Coord.). Comentários à lei de abuso de autoridade. São Paulo: Thomson Reuters, 2020, p.29-30. [17] LESSA, Marcelo de Lima; MORAES, Rafael Francisco Marcondes de; GIUDICE, Benedito Ignácio. Nova lei de abuso de autoridade. São Paulo: Academia de Polícia, 2020, p.24-25. [18] NORCIA, André. Delegado Rodrigo. São Paulo: Labrador, 2021, p.45.