O dia a dia policial e forense é um manancial de experiências inusitadas praticamente inesgotável, exigindo daqueles que atuam nas lides jurídicas capacidade de adaptação, criatividade e solução de problemas muitas vezes inéditos. Essa insegurança constante é, concomitantemente, um problema extremamente desafiador e uma fonte de crescimento e acúmulo de experiências e conhecimento.
Sem apontar nomes ou lugares, é fato que um pedido incomum ocorreu em sede de Inquérito Policial e poderia ter acontecido na fase processual. Um investigado contra o qual pende mandado de prisão, estando foragido, mas com advogado constituído, acompanhando o feito, requereu à Autoridade Policial prestar interrogatório por meio de videoconferência para que não precisasse se apresentar na Delegacia e ser preso para poder exercer seu direito de autodefesa.
Eis a questão: seria possível deferir esse pedido de interrogatório de foragido por videoconferência?
A questão pode comportar alegação de cerceamento de exercício da ampla defesa, ainda que em fase de investigação, mais especificamente, como já mencionado, sob o aspecto da autodefesa. Acaso o pedido tivesse sido feito em juízo, já na fase processual, com intensificação da ampla defesa e do contraditório, tal alegação poderia, ao menos aparentemente, ganhar ainda mais força.
Acontece que o pedido do foragido por meio de seu defensor é algo incomum, justamente porque ausente previsão legal para tal caso. Trata-se daquilo que Delmanto chama de “atipicidade processual penal”.
A previsão legal do ato do interrogatório por meio de videoconferência é excepcional e se refere ao “preso”, não havendo qualquer menção de “foragido” (inteligência do artigo 185, §§ 2º. e 8º., CPP – sempre com menção a “réu preso” e a “pessoa que esteja presa”). Casos excepcionais, como uma pandemia ou algum motivo justo poderiam ensejar a adaptação dessa modalidade de interrogatório ao indiciado ou réu solto, desde que com a anuência dele e de seu defensor, já que também não existe previsão expressa.
Observe-se que a falta do interrogatório no processo é considerada como nulidade quando este se faz “presente”, nos termos do artigo 564, III, “e”, CPP. Ainda assim há discussão sobre ser essa nulidade absoluta ou relativa, sendo fato que os Tribunais Superiores têm apontado para a relatividade da nulidade, especialmente nos casos de réus revéis ou foragidos (v.g. HC 68.490 STF; HC 73.344 STJ e HC 73.827 STJ).
O artigo 185, CPP é expresso em estabelecer que o réu “que comparecer perante a autoridade” será interrogado. Ou seja, pressuposto para o ato do interrogatório é o comparecimento do indiciado ou réu. Por isso é até possível adaptar, excepcionalmente, o interrogatório por videoconferência no caso do “réu ou indiciado solto”, eis que se pode considerar que este “compareceu” diante da autoridade, ainda que virtualmente, já que não se encontra foragido e mantendo sua localização oculta ou incerta. Muito diversa é a condição do “foragido”, o qual se homizia. Não se pretende aqui defender a tese indefensável de que existiria alguma obrigação do procurado de se entregar à justiça, já que vigora no nosso ordenamento o direito a não – autoincriminação. Entretanto, pretender retirar desse direito a não – incriminação, sem base em previsão legal no ordenamento processual penal, um suposto direito ao interrogatório por videoconferência, seria olvidar um princípio geral do Direito, consistente em que ninguém pode se beneficiar da própria torpeza (“Nemo auditur propriam turpitudinem allegans”). Ora, se o indiciado ou réu não tem obrigação legal de se entregar, também não se pode afirmar que sua conduta em fugir do alcance da justiça seja algo de que lhe possam derivar direitos de qualquer espécie.
A participação do indiciado ou réu no ato do interrogatório é um direito seu, mas não há obrigatoriedade, pois se trata de uma faculdade sua, podendo comparecer e ficar em silêncio ou simplesmente optar por não comparecer. Há contradição evidente na conduta de quem foge e não quer comparecer ao ato, mas requer a sua realização por videoconferência. As normas que norteiam o interrogatório judicial são aplicáveis, “mutatis mutandis” ao interrogatório policial, nos termos do artigo 6º., V, CPP. Portanto, o pedido do foragido deve ser indeferido tanto em sede de Inquérito Policial, como já na fase processual. Ele atua naquilo que se convencionou designar pela frase latina “venire contra factum proprium” no âmbito civil, mas aplicável com o devido ajuste ao caso processual penal em estudo. A vedação do comportamento contraditório está a indicar que não se deve deferir o pedido de interrogatório por videoconferência a quem decidiu evadir-se e, portanto, não comparecer ao ato. Satisfazer sua vontade, seria dar asas ao voluntarismo e ao capricho do indiciado ou réu, sem sustento em previsão legal processual.
É de se lembrar e reiterar que o interrogatório por videoconferência é opção excepcional e inclusive somente se justifica para satisfazer alguma das finalidades que estão elencadas nos incisos I a IV do artigo 185, CPP, razão pela qual o juiz ou delegado “deverá decidir de forma fundamentada a esse respeito (CF, art. 93, IX)”. No caso enfocado não haveria também tipificação processual nas motivações previstas na legislação respectiva. A única hipótese com aparente coerência (apenas aparente) seria aquela estabelecida no artigo 185, II, CPP, referente à viabilização da participação do réu ou indiciado no ato processual. Mas, a lei exige para tanto que “haja relevante dificuldade para seu comparecimento”, seja “por enfermidade ou outra circunstância pessoal”. No caso do fugitivo, não se trata, por obviedade, de questão referente a enfermidade. Seria sim uma “circunstância pessoal”, mas circunstância esta que jamais poderia justificar uma excepcional concessão do judiciário ou da polícia. A situação se aparenta com a popular descrição do indivíduo que mata os pais e depois pede ajuda por ser órfão!
Também chama a atenção para a aplicação da “excepcionalidade da medida” do interrogatório “on line”, restrito aos “réus presos” e somente “quando ocorrer uma das hipóteses do artigo 185, § 2º., I a IV, CPP, o jurista Edilson Mougenot Bonfim.
Retomando a questão da vedação da contradição, conforme esclarece Ballerini Silva:
A vedação do comportamento contraditório tem ganhado tal relevância que, inclusive, tem se espraiado para outras esferas do direito. A jurisprudência dos Tribunais Superiores tem reconhecido tal dever até mesmo no processo penal, impedindo seja acusação (…), seja defesa (…), de se portarem em desacordo com o venire contra factum proprium.
Realmente a jurisprudência, inclusive do STF, tem acatado a aplicação da vedação da contradição ou “venire contra factum proprium” no Processo Penal em alguns casos. Vejamos:
“Habeas corpus. Ação penal originária. Resposta à acusação. Paciente devidamente notificado a oferecê-la (art. 4º da Lei nº 8.038/90). Inércia. Recebimento da denúncia sem a defesa preliminar. Admissibilidade na espécie. Conduta voluntária do paciente, advogado com larga vivência profissional. Nítida estratégia defensiva. Cerceamento de defesa. Não ocorrência. Nulidade inexistente. Impossibilidade de o paciente se opor a fato a que ele próprio tenha dado causa. Teoria do venire contra factum proprium. Ausência de arguição oportuna da suposta nulidade e de demonstração do prejuízo sofrido. Precedentes. Ordem denegada.(…). 4. Impossibilidade de se prestigiar o comportamento contraditório do paciente, uma vez que “no sistema das invalidades processuais (HC nº104.185/RS, Segunda Turma, Relator o Ministro Gilmar Mendes, DJe de 5/9/11) deve-se observar a necessária vedação ao comportamento contraditório, cuja rejeição jurídica está bem equacionada na teoria do venire contra factum proprium, em abono aos princípios da boa-fé e lealdade. 5. Com efeito, “ninguém pode se opor a fato a que [tenha dado] causa; é esta a essência do brocardo latino nemo potest venire contra factum proprium” (ACO nº 652/PI, Pleno, Relator o Ministro Luiz Fux , DJe de 30/10/14)” (STF, HC 137.959/ PR, 2ª. Turma, Rel. Ministro Dias Toffoli, j. 04.04.2007) .
No mesmo diapasão vem decidindo o STJ quanto à necessária repressão ao que se tem denominado de “comportamento sinuoso” no Processo Penal, tendo em vista ser este violador da “boa fé objetiva”. Inobstante não se possam esquecer as peculiaridades do Processo Penal, tais como a Presunção de Inocência, Direito ao Silêncio e não – autoincriminação, há situações concretas nas quais não se pode compactuar com a má – fé, especialmente como geradora de direitos a alguém que atua com base exatamente nela. Assim é que no HC 143.414, 6ª. Turma STJ, a Ministra Relatora, Maria Thereza de Assis Moura, afirma “que a relação processual é pautada pelo princípio da boa-fé objetiva” e pela “proibição de comportamentos contraditórios”. Em sentido semelhante também se manifesta o Ministro Relator Og Fernandes, no HC 206.706, 6ª. Turma STJ, sendo acompanhado por seus pares.
Caberia tanto ao Delegado de Polícia como ao Magistrado, simplesmente designar então uma data e horário para o ato do interrogatório, deixando à decisão do indiciado ou réu seu comparecimento ou não, pois que esse exercício de autodefesa não é obrigatório, mas sim uma faculdade. O que não cabe é permitir que a Administração da Justiça participe de um ato que reforça de certa forma a conduta de evasão que, embora possa ser albergada pela não – autoincriminação, não autoriza a Justiça em sentido amplo (Judiciário, Polícia e Ministério Público) a compactuar com tal conduta.
Finalmente é de lembrar que se o acusado ou indiciado foragido pretende fazer alguma alegação defensiva no bojo do Inquérito Policial, pode valer-se das prerrogativas de seu defensor técnico. Atualmente não é somente no processo que o advogado oferta razões. Também na fase investigatória lhe é deferido apresentar tais razões, que podem espelhar as alegações que pretende fazer o imputado em sua defesa. Portanto, mesmo na fase do Inquérito Policial, o implicado não fica impedido de apresentar suas alegações defensivas devido ao indeferimento de seu interrogatório “on – line”, tendo em vista sua condição de foragido. Isso é possível graças às alterações promovidas no Estatuto da OAB pela Lei 13.245/16, dando nova redação ao artigo 7º., inciso XXI, alínea “a” da Lei 8.906/94. É claro que essas razões ofertadas indiretamente pelo defensor não correspondem ao ato de interrogatório, que é marcado pela personalidade (ato personalíssimo) e pela oralidade. No entanto, não se pode afirmar que o indiciado ficaria sem chance de expor o que bem desejar em sua defesa nos autos.
Autor: Eduardo Luiz Santos Cabette, Delegado de Polícia aposentado, Mestre em Direito Social, Pós – graduado em Direito Penal e Criminologia, Parecerista e Consultor Jurídico, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na pós – graduação do Unisal e Membro do Grupo de Pesquisa de Ética e Direitos Fundamentais do Programa de Mestrado do Unisal.