Não raro, vemos artigos criticando os Delegados de Polícia e, por extensão, o inquérito policial. Neste artigo, tentaremos rebater os argumentos mais comuns, quais sejam, a “carreira única”, o “ciclo completo” e o “fim do inquérito”.
Não raro, vemos artigos[1] criticando abertamente a figura do Delegado de Polícia e, por extensão, o inquérito policial, procedimento investigatório por ele privativamente presidido.
O discurso é quase sempre o mesmo: “carreira única”; “ciclo completo” e “fim do inquérito policial”, tríade vendida aos quatro ventos como a tábua de salvação para o problema da segurança pública no Brasil. E não é só. Para acrescer, vez ou outra ainda citam a participação da polícia judiciária no aparato estatal dos já suplantados “anos de chumbo”, período em que a grata parte dos atuais Delegados de Polícia – e até mesmo aqueles que os abertamente criticam – sequer havia nascido[2].
Pois bem. Quanto à origem do Delegado de Polícia e do procedimento investigatório a ele titulado (o inquérito policial), é certo que desde a chegada da família imperial no Brasil, “polícia” e “magistratura” se confundiam, daí o advento da expressão “policia judiciária”, tendente a, em essência, não apartar uma função da outra, já que a polícia, conforme ensinava o jurista francês Faustin Hélie, “é o olho da Justiça”. Conquanto seja um sistema tipicamente brasileiro, o modelo do inquérito policial vem dando certo há quase duzentos anos, resistindo a reformas, alterações e levantes políticos e populares. Desse modo, fossem os Delegados de Polícia ou o inquérito policial instrumentos de opressão, certamente não teriam sobrevivido a Constituição Cidadã, a qual, de maneira textual, constitucionalizou a carreira de Delegado e legitimou as funções de polícia judiciária e de apuração das infrações penais. E tanto isso é verdade que o Estatuto dos Delegados de Polícia (o qual reforçou a figura do Delegado enquanto autoridade policial e ocupante de carreira jurídica de Estado) foi posto em vigor em 20 de junho de 2013[3] – no auge de um governo tido como de “esquerda” –, dando mostras de que essa figura pública, imparcial por natureza, é imprescindível para a manutenção do Estado Democrático de Direito.
Indagam ainda os críticos, com combativa insistência, “se a carreira de Delegado seria policial ou jurídica?”. A resposta nos parece óbvia. A carreira de Delegado de Polícia é híbrida, pois conjuga a operação da lei (e, portanto, do Direito), com a rotina operacional, isto é, a coordenação, a execução e a materialização de atividades e diligências repressivas. Por isso é o Delegado de Polícia é um operador do Direito (e não apenas um servidor público) diferenciado, pois personifica o braço armado do Estado e, no mesmo passo, maneja a lei que nele vige. Os que o criticam se insurgem até por ter que dispensar a ele – não só por obrigação, mas por deferência e educação – um tratamento protocolar garantido por lei, entretanto não se furtam de reverenciar, da mesma forma, profissionais outros de similar formação acadêmica, mostrando que a rusga pela carreira e as atribuições dela é, infelizmente, quase que pessoal.
Mas a críticas não param: “Se fosse o Delegado de Polícia integrante de carreira essencialmente jurídica” – dizem eles –, não poderia “ignorar os princípios do contraditório e da ampla defesa”. Bem, não é mais novidade que o inquérito policial há tempos deixou de ser unidirecional, isto é, não visa apenas dar suporte a acusação. O inquérito policial, hoje, é bidirecional, ou seja, busca atender não só aos órgãos de persecução penal, mas sim, e também, a própria defesa. Não é à toa que a participação do advogado no inquérito aumentou sobremaneira, seja com possibilidade de ofertar razões e quesitos durante a apuração de infrações[4], seja com o acesso a elementos não delimitados, constituindo direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa[5]. O Delegado de Polícia, assim, é uma autoridade pública isenta, compromissada apenas com a busca pela verdade, e nada mais. Para ele, não existe culpado ou acusado. Existe apenas, indiciado ou investigado. O mérito final é da Justiça.
Adiante. O Delegado de Polícia, ainda segundo os seus respeitáveis críticos, carrega reflexos autoritários dentro da própria “corporação” (sic), pois a fraciona em duas castas, a “superior” (Delegados) e a “inferior” (demais carreiras). Nos parece que alguns, infeliz ou maldosamente, confundem “castas” com “carreiras diversas dotadas de atribuições próprias”. Qualquer órgão público, bem sabemos, possui hierarquia vertical, isto é, “topo, meio e base”. Sem isso, ele não funciona. Os Delegados, por força constitucional (e não por soberba ou vaidade), são os responsáveis por dirigir as polícias civis. E não foram os Delegados que tomaram esse múnus por si sós, eles tão somente o receberam, há trinta e dois anos, das mãos de quinhentos e doze deputados constituintes legitimados pelo povo brasileiro para tanto. Se as “dirigem”; as “coordenam”, as “titulam” e as “superintendem”, ou, de maneira mais clara e óbvia, as “comandam”. Isso não equivale a impor castas, mas sim atribuir divisões de tarefas e atribuições, onde uns deliberam e decidem e outros executam, como num campo de batalha. É um princípio basilar de comando e controle, existente até num singelo estabelecimento de ensino ou numa pequena empresa particular. A polícia implica espírito de corpo e, a despeito da hierarquia a ela inerente, existe respeito mútuo entre todos, pois de uma peça depende o funcionamento da máquina toda.
Dando sequência, vemos ainda o aguerrido discurso do polêmico “ciclo completo” e da “carreira única” na polícia. Vamos analisar cada um deles, apenas por amor ao debate.
Policia de ciclo completo é aquela que, numa mesma organização – repita-se, “numa mesma organização” –, conjuga atividades preventivas (uniformizada ou fardada) e repressivas (de investigação). A ideia é ótima. Excelente até. Entretanto existe um pequeno detalhe que nem sempre é posto as claras. As polícias de ciclo completo – como, por exemplo, as norte-americanas – funcionam bem por serem únicas, isto é, não são elas divididas em ramos “civil” ou “militar”. No Brasil, a coisa é diferente. Não temos policias municipais únicas (como as de Los Angeles ou New York), mas sim duas polícias estaduais com assento constitucional e atribuições originárias específicas. Uma previne (militar) e a outra investiga (civil). Desse modo, ou se fundem as duas (para aí sim termos o ciclo completo numa “mesma organização”) ou se mantém o sistema vigente, posto não ser admissível que o Estado possua dois organismos policiais diferentes que façam a mesma coisa (patrulhem e investiguem), gerando conflitos e competições não saudáveis.
Outros, entretanto, defendem que cada polícia estadual fique com certa parcela de atribuição, seja em razão de “local” (“loci”); ou da “matéria” (“materiae”), como algumas forças policiais da Europa. Isso não nos parece muito seguro, pois a isonomia constitucional seria a rigor comprometida, já que cidadãos protegidos por uma mesma Carta de Princípios teriam os seus comportamentos antissociais avaliados por profissionais de polícia de formação (e atribuição) totalmente diversa, gerando insegurança jurídica e tratamento não igualitário (uns vão para as Delegacias e outros para os quartéis). Some-se a isso que o sistema processual penal brasileiro não prescinde, não hoje, da figura imparcial da autoridade de polícia judiciária (Delegado de Polícia), o qual, apenas “en passant”, possui, no Código de Processo Penal e na legislação esparsa, cerca de sessenta prerrogativas exclusivas de persecução[6], as quais, por restrição normativa, não podem ser exercidas por agentes outros (independente da capacidade intelectual que eles notoriamente possuam), sejam eles civis ou militares.
Desse modo, conquanto a ideia seja atraente e sedutora num primeiro momento, ela traria vários percalços legais, técnicos e operacionais, afinal a realidade do Brasil é bem diversa daquela existente em outros países, onde a organização policial e judiciária é outra e completamente diferente. Assim, a possível tese de “celeridade nas investigações” não teria, a nosso ver, qualquer fundamento prático, pois ainda que houvesse “ciclo completo” o sistema processual penal ainda seria o mesmo, exigindo-se toda a rotina a ele imposta (registros, autos, termos, oitivas, cautelares etc), seja por uma; seja por duas ou mais polícias. Se a Constituição Federal for alterada (e com ela toda legislação processual penal do Brasil) e as polícias estaduais forem unificadas (e automaticamente duplicadas em termos de recursos humanos), aí sim a ideia poderia voltar a ser objeto de debate, e sem paixões.
Resta ainda a questão da “carreira única”, como sendo aquela onde o cidadão ingressa no órgão policial na base e ascende até a maior graduação, geralmente através de provas e tempo de serviço. É a regra da polícia norte-americana, onde o interessado vai de patrulheiro a chefe de polícia. Entretanto aqui a coisa é diferente, ao menos nas polícias de investigação, pois as funções de polícia judiciária são exercidas por “carreiras” diversas, cada qual com uma expertise e formação específica. Desse modo, com relação ao propalado “modelo FBI”, a despeito da respeitabilidade de tal órgão de investigação, cairíamos novamente na mesma discussão, pois a lei norte-americana não prevê a figura da autoridade de polícia judiciária (e nem as centenas de atribuições legais a ela exclusivamente impostas no Brasil) sendo que o nosso sistema jurídico teria que ser totalmente alterado para que se tentasse algo do tipo sem corrermos o risco de, a curto prazo, comprometermos o atual método investigatório e as garantias constitucionais a ele inerentes. Ademais, quer nos parecer que nem mesmo no “Bureu” norte-americano a carreira policial seria única, posto existirem outras[7].
Quanto aos concursos, estes em regra são abertos para o preenchimento dos “cargos” (conjunto de atribuições e responsabilidades) de uma “carreira” (conjunto de classes da mesma natureza, hierarquicamente escalonados, de acordo com o grau de complexidade das atribuições e o nível de responsabilidade). Ou seja, de início já se vê que o “cargo” (número de postos de trabalho) – e consequentemente, a “carreira” (o “posto” em si) – são hoje apenas atingíveis por concurso público, nos termos do art. 37, II, da Constituição Federal. Assim, quem ingressa na “carreira” de agente de polícia pode ascender até o topo dessa mesma carreira (que já é única) e, caso queira alterá-la (e assim, exercer outras atribuições que não lhe sejam legalmente tituladas), deverá ser submetido a um novo concurso. Isso mostra que a “carreira única” já existe nas nossas polícias, só não sendo apenas possível, sem certame público, “mudar” de carreira (isto é, de atividades legais primárias), sob pena de quebra constitucional. Seria o mesmo que um Oficial de Justiça ascendesse à carreira de Juiz de Direito por tempo de serviço ou, pelo mesmo critério, um Oficial de Promotoria à de Promotor de Justiça.
Para exercer certas atividades do “cargo” da “carreira” (principalmente na polícia judiciária), a lei (e também a Constituição) exige que o seu titular (o Delegado de Polícia) seja bacharel em Direito. Isso ocorre em razão da investigação, neste país, ser revestida de medidas e garantias legais cujo manejo (e zelo) exigem conhecimentos jurídicos sólidos, e não apenas noções auferidas num rápido processo seletivo. Não se trata do modelo norte-americano, em que os detetives trabalham com os promotores num sistema totalmente diverso do nosso. Aqui, apenas os Delegados de Polícia é que, em âmbito policial, possuem legitimidade para decretar medidas privativas de liberdade; conceder liberdade provisória; representar por medidas cautelares e requisitar perícias, dados e documentos no interesse da investigação, onde a pessoa é titular de direitos e não mero objeto de pesquisa operacional. Mas do jeito que a coisa é vendida, alguns tem a impressão de que a carreira de Delegado é inatingível para quem está nas demais carreiras, sendo apenas reservada aos “jovens bacharéis sem experiência”. Ora, ser um “jovem bacharel” não é requisito para o certame, que é público. Qualquer agente (e de qualquer idade) que tenha graduação em Direito – e hoje isso é quase uma regra – pode candidatar-se ao cargo passando por uma seleção democrática chamada “concurso público” e, enfim, exercê-lo sem nenhuma restrição.
Ainda no particular da “carreira única”, muitos citam a Polícia Rodoviária Federal como exemplo de sucesso nesse sentido. Mas o que alguns esquecem é que a Polícia Rodoviária Federal não exerce funções de polícia judiciária e, por isso, não precisa de autoridades policiais (leia-se, de cargos de “Delegados de Polícia de carreira”) em seus quadros. Desse modo, para executar, dentre outras de relevo, a atividade constitucional de patrulhar ostensivamente as nossas rodovias federais, não se exige, por lei, um cargo de carreira tipicamente jurídica, mas sim, diploma superior em qualquer área de formação e preparação técnica-profissional pela ANPRF. Destarte, em razão das atribuições exclusivamente policiais emprestadas ao órgão, a promoção do policial rodoviário federal (que possui apenas quatro classes com atribuições gerenciais dentro do mesmo cargo) poderá ser feita por critérios próprios, aliás, nada mais justo, tal qual já ocorre, de “per si”, em todas as carreiras (do agente à autoridade) das polícias judiciárias brasileiras. No caso da PRF temos a carreira única por excelência, pois a lei processual penal não empresta atividade de polícia judiciária ao policial rodoviário federal (como o faz, em diversas passagens, com o Delegado), seja ele de terceira ou de classe especial. Nas polícias judiciárias, certas atividades persecutórias são privativas da carreira de Delegado de Polícia, daí a inviabilidade em implantar, de maneira sumária, a “carreira única” nessas instituições. Assim, na PRF ou nas Guardas Civis das cidades brasileiras – cujos órgãos tem atribuições individuais de complexidade crescente a todos os membros, respeitado apenas o tempo de serviço – a carreira única não é apenas vantajosa, mas também, ideal.
Enfim, vamos ao tão combatido inquérito policial. Os seus críticos dão a entender que ele é retrógrado, inútil e presidido em gabinete climatizado pela exdrúluxa figura da “autoridade policial”[8], além de outros deméritos. Eu, que fui agente da autoridade, nunca o vi dessa forma. Aliás, vi que, em razão da sua importância e relevo, gostaria te ter a oportunidade legal de conduzi-lo. E assim, como qualquer brasileiro graduado em Direito, prestei um concurso público e, após ser democraticamente aprovado, passei a fazê-lo. A condução de uma investigação, ainda que de forma mediata, requer estratégia, conhecimento jurídico (controle de legalidade e oportunidade) e coragem moral, sob pena da vanguarda restar enfraquecida e ficar exposta a toda sorte de ataques que só podem ser rechaçados pela blindagem da lei, que não é tão simples ou óbvia de ser manejada, principalmente sob pressão. As pessoas não entendem que o suporte à ação de campo vem de um expediente juridicamente edificado, e que o resultado dessas diligências também trará efeitos legais, não podendo o objeto daquelas ficar a mercê de operadores que, sem prejuízo da capacidade que certamente tem, não dominem as nuances e os detalhes da lei, sob pena do nosso garantismo individual ruir. Polícia não é apenas ir para a rua. O “ir para a rua” com suporte jurídico deve ser o mote das forças policiais modernas, pois qualquer ação operacional (buscas, prisões etc), querendo os nossos críticos ou não, vai desaguar numa Delegacia e sobre os ombros do Delegado de Polícia, o qual, embora por vezes não a execute diretamente; a constrói; a dirige e, ao fim, a traduz e legitima nos autos.
Mas enfim, mesmo que um dia implantassem a “carreira única” ou o “ciclo completo”, a instituição policial doravante idealizada ainda teria que executar o trabalho persecutório que hoje é levado a cabo pela polícia judiciária, o que não seria feito de forma oral. Ou seja, sempre existirá um procedimento escrito para documentar diligências e torná-las auditáveis, inclusive pelos órgãos de controle externo, que jamais abrirão mão disso. O inquérito, hoje, é o mais democrático deles, posto ser bidirecional e acessível a qualquer interessado na causa. É controlado pela autoridade policial, pelo Ministério Público e pelo Poder Judiciário. Aliás, instituições outras que por decisão judicial passaram a exercer atividades persecutórias similares a da polícia, também usam procedimentos análogos (quase que copiados do inquérito policial) para os seus misteres, mas, ainda assim, também se unem, numa pequena parcela, para apontá-lo como o eterno vilão do espetáculo, posto não terem, ao certo, o intimamente desejado domínio de mando sobre ele.
Dando conclusão o texto – em verdade, um desabafo exercido com base na liberdade de manifestação de pensamento e no direito de retorsão a um agravo –, nos deparamos com a máxima de que “por trás de toda violência de um soldado da PM, existe a leniente caneta de um Delegado de Polícia”[9]. Bem, não contentes em generalizar os servidores responsáveis pela nossa sociedade não viver no caos, ainda sobra um ranço, vez mais, para os que dia e noite fazem o exame de legalidade das capturas no Brasil, como se inquisidores espanhóis fossem. Cercados pelas severas normas de abuso de autoridade; de tortura; de violência arbitrária; de prevaricação e de improbidade, temos os “lenientes” Delegados de Polícia, que talvez sejam a elas imunes! Premidos pelos órgãos correcionais, pelas ouvidorias, pelo Ministério Público, pela Defensoria Pública, pelo Poder Judiciário, pela imprensa, pelas ONGs e pela sociedade, esses “lenientes” fazem pouco de tudo e de todos, pois são a eles(as) igualmente imunes! Não vemos Delegados de Polícia serem punidos; demitidos; achincalhados, perseguidos ou humilhados por suas decisões tomadas num átimo, afinal, como se quer fazer ver, “eles estão acima da lei”. Enfim, uma coisa é certa, e o digo com conhecimento de causa, e não do alto de uma montanha: Não fossem esses “lenientes” a, assistidos pelos seus incansáveis agentes, movimentar a máquina persecutória do Estado, a persecução penal tal qual hoje vemos (com a consequente punição de milhares de homicidas, corruptos, ladrões e estupradores), simplesmente não existiria. De coração, eu juro que não entendo de onde vem tanto preconceito. Enfim, senhoras e senhores, “este sistema NÃO precisa acabar”