A nova Lei de Abuso de Autoridade entra em vigor e reforça devida investigação legal

Nesta sexta-feira, dia 3 de janeiro de 2020, entra em vigor a Nova Lei de Abuso de Autoridade (Lei 13.869/2019), após 120 dias de vacatio legis[1], permeada por debates na comunidade jurídica e discussões políticas, ampliadas com o recente advento do “pacote anticrime” (Lei 13.964/2019), cujo projeto original sofreu profundas mudanças durante a tramitação legislativa.

A Nova Lei de Abuso revoga a Lei 4.898/65, assim como a majorante da violação de domicílio por funcionário público e o abuso de poder (CP, arts.150, §2º e 350). Prevê ainda 23 novas infrações penais em seu corpo e acrescenta delito no Estatuto da Advocacia (Lei 8.906/94, art.7º-B), criminalizando a violação de algumas prerrogativas advocatícias.

De início, vislumbra-se potencial conflito de normas entre o artigo 20 da Lei 13.869/19 e o citado artigo 7º-B, do Estatuto da OAB, incluído pelo artigo 43 do novo diploma, porquanto o primeiro pune o impedimento injustificado de entrevista pessoal e reservada do preso com seu defensor, enquanto o segundo reprime a violação do direito do advogado comunicar-se com seu cliente preso, também pessoal e reservadamente (EAOAB, art.7º, III), condutas típicas similares[2].

A Lei 13.869/19 promove ainda modificações na Lei de Prisão Temporária, ao inserir o § 4º-A no artigo 2º da Lei 7.960/89, para que conste o período de duração da custódia cautelar no mandado prisional. Também acrescenta o artigo 227-A no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), condicionando efeitos da condenação à reincidência nos delitos do ECA perpetrados com abuso de autoridade. Além disso, incorpora a escuta ambiental no ilícito do artigo 10 da Lei 9.296/96, diploma que passará a disciplinar a captação ambiental como objeto de reserva jurisdicional absoluta no seu novo artigo 8º-A, introduzido pela Lei 13.964/19, fruto do “pacote anticrime”.

Ao coibir a ofensa a vários direitos fundamentais em seus ilícitos criminais, a Nova Lei de Abuso intensifica a incidência das garantias integrantes do princípio-síntese do devido processo legal[3] desde a etapa extrajudicial do processo penal, materializada no inquérito policial, derivação designada devida investigação legal[4] ou devida investigação criminal[5],, superando rótulos como inquisitório sigiloso substituídos, respectivamente, por procedimento apuratório (com contraditório possível)[6] e de publicidade restringível[7], sob a premissa de que o desrespeito às cláusulas gerais do devido processo e da dignidade humana corrompe na origem a escorreita persecução criminal.

Quanto ao elemento subjetivo de seus tipos penais, a novel legislação demanda finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, mero capricho ou satisfação pessoal do sujeito ativo e rechaça o ilícito de hermenêutica ao dispor que a mera divergência na interpretação da lei ou na avaliação de fatos e provas não caracteriza abuso de autoridade (art.1º, §§ 1º e 2º), preservando a independência funcional fundamentada dos agentes  públicos operadores do Direito[8].

Observa-se que, conquanto a Lei 13.869/19 não criminalize algumas atitudes espúrias violentas, antes sancionadas pela ora revogada Lei 4.898/65, com destaque para a prática de “qualquer atentado à incolumidade física do indivíduo” (art.3º, “i”), o novo cenário deve reavivar a aplicação, ainda que subsidiária, do delito de violência arbitrária (CP, art.322), sobre o qual parcela da literatura jurídica sustentava a revogação tácita justamente pela suplantada Lei 4.898/65[9], não obstante existência de entendimento pela vigência do aludido dispositivo[10], agora revigorado diante da lacuna na nova Lei, que prevê figuras penais com violência dirigida a fins como constranger custodiado a exibição corporal, a situação vexatória ou a produzir prova contra si ou terceiro (art.13), ou ainda para a coação voltada ao acesso a imóvel (art.22, §1º, I).

Outrossim, em dispositivos como o artigo 16, que penaliza a omissão ou falsa identificação de agentes estatais, assim como o artigo 18, que delimita o interrogatório policial do preso no período de repouso noturno, a Lei 13.869/19 busca uma distinção mais técnica entre os vocábulos captura e prisão, em consonância com o Conjunto de Princípios para Proteção de Todas as Pessoas Sujeitas a Qualquer Forma de Detenção ou Prisão da ONU[11] que designa, para a terminologia captura, o ato de deter um indivíduo por suspeita da prática de infração ou por ato de uma autoridade, enquanto pessoa detida como aquela privada de sua liberdade, salvo se decorrente de sanção penal e, por fim, pessoa presa aquela cuja liberdade foi cerceada por condenação criminal.

Destarte, a captura retrata a restrição momentânea do suspeito para que seja conduzido até uma autoridade estatal legitimada, enquanto a detenção equivale à prisão provisória, tais como a custódia em flagrante delito, a preventiva e a temporária, distinguindo-se da prisão-pena, própria da execução da sanção imposta ao condenado[12].

Nesse contexto, a figura penal do caput do artigo 9º da Nova Lei de Abuso, ao punir a decretação de medida privativa de liberdade, alude à privação em sentido estrito, isto é, apartada da mera captura. Refere-se à formalização da detenção, ou seja, à decretação da custódia em flagrante delito do suspeito capturado apresentado ou à determinação de outras prisões cautelares (preventiva ou temporária).

Seguindo as diferenças técnicas das palavras empregadas, a denominada captura (CPP, art.301), executada por qualquer do povo ou policial, representa a famosa voz de prisão na intervenção diante de aparente prática de infração penal. Num segundo momento é que ocorrerá a eventual conversão dessa captura, após análise técnico-jurídica realizada pelo delegado de polícia na audiência de apresentação e garantias do artigo 304 do CPP. Sem a existência de estado flagrancial (CPP, art.302) e de fundada suspeita (CPP, art.304, § 1º), ninguém pode ser recolhido ao cárcere, vale dizer, não deve ser decretada a prisão em flagrante.

Assim, considerando a ação nuclear decretar, que significa ordenar, determinar, mandar ou estabelecer explicitamente[13], podem ser sujeitos ativos da figura penal do artigo 9º, caput, da Lei 13.869/19, as autoridades legitimadas a ordenar formalmente a custódia de alguém, isto é, o delegado de polícia como regra para a prisão em flagrante delito e o juiz de direito para as demais prisões cautelares (preventiva e temporária). Já as figuras equiparadas, do parágrafo único do artigo 9º, são expressamente direcionadas a condutas omissivas da autoridade judiciária ante prisão manifestamente ilegal, possibilidade de concessão de liberdade ou substituição por medida cautelar diversa ou, ainda, cabimento de ordem de habeas corpus.

Com efeito, os demais servidores policiais (agentes do delegado de polícia), incumbidos da captura de suspeitos de delitos, executam medidas de privação de liberdade, não as ordenam e, nesse sentido, tanto a revogada Lei 4.898/65, em seu artigo 4º, alínea “a”, quanto o ora também revogado artigo 350 do Código Penal e ainda o próprio Projeto de Lei que resultou na Lei 13.869/19, no seu vetado artigo 11 (com veto mantido pelo Congresso Nacional) previam as distintas condutas de executar (realizar a captura) e ordenar (equivalente a decretar, determinar oficialmente a prisão).

Nessa perspectiva, os agentes da autoridade policial não figuram como sujeitos ativos do tipo penal do caput do artigo 9º da Lei 13.869/19. Se privarem a liberdade de alguém acreditando equivocadamente estarem escorados na lei, como regra não haverá dolo, razão pela qual não há que se falar em prática delitiva pelo funcionário público. Todavia, na hipótese de conduta dolosa de um policial em privar ilícita e intencionalmente a liberdade de alguém, poderá o agente estatal, como qualquer pessoa, responder por crimes como sequestro ou cárcere privado (CP, art.148) ou infrações mais graves como extorsão qualificada ou extorsão mediante sequestro (CP, arts.158, § 3º e 159), a depender das circunstâncias concretas.

Ademais, para configurar o ilícito penal, a redação do caput do artigo 9º da Nova Lei dispõe que a ordenação da custódia deve ser em manifesta desconformidade com as hipóteses legais, as quais, para a decretação da prisão em flagrante, como espécie do gênero decisão de indiciamento (Lei 12.830/13, art.2º, §6º), consistem no estado de flagrância delitiva, seu requisito temporal, consubstanciado em uma das modalidades elencadas nos incisos do artigo 302 do CPP (flagrante próprio, impróprio ou presumido), somado à fundada suspeita, seu requisito probatório retratado na justa causa (fumus commissi delicti), previsto no § 1º do artigo 304 do estatuto processual penal, como lastro indiciário a admitir o encarceramento extrajudicial compatível com os postulados constitucionais[14].

A título ilustrativo de falta de justa causa (fundada suspeita), tratando-se de aparente estado de flagrância, o reconhecimento provisório de excludentes de antijuridicidade pelo delegado de polícia é medida de rigor, diante de axiomas como a presunção de não culpa, até porque se não há crime (CP, art.23), não há flagrante delito, de modo a consagrar a liberdade como regra e afastar equivocada cogitação de descabida decretação de custódia e autuação em flagrante, ato decisório ilícito caso os elementos amealhados denotem a situação descriminante e, se doloso, em tese suscetível de configurar o novo delito de abuso de autoridade sob exame.

Portanto, a ausência de substratos sólidos que preencham os requisitos traduzidos no binômio estado flagrancial (requisito temporal) e fundada suspeita (requisito probatório), torna ilegal a decretação da custódia flagrancial, enseja o denominado criptoflagrante (derivado do criptoindiciamento)[15] ou flagrante obtuso[16] e obsta a lavratura do auto prisional por implicar relaxamento e eventual responsabilização por abuso de autoridade, sem prejuízo dos fatos serem  perscrutados em inquérito policial instaurado via portaria[17].

À luz das breves ponderações lançadas, a despeito das controvérsias que orbitam a Nova Lei de Abuso de Autoridade, sobretudo pela turbulenta conjuntura de sua publicação, a inovação legislativa oferece avanços na tutela de direitos fundamentais e salutares filtros acerca do elemento subjetivo para a configuração dos ilícitos penais nela previstos.

 

[1] BARBOSA, Ruchester Marreiros. A nova Lei de Abuso de Autoridade e a inconstitucionalidade que não é para tanto. Revista Consultor Jurídico,out.2019. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-out-01/academia-policia-abuso-autoridade-inconstitucionalidade-nao-tanto

[2] LESSA, Marcelo de Lima; MORAES, Rafael Francisco Marcondes de; GIUDICE, Benedito Ignácio. Nova Lei de Abuso de Autoridade: diretrizes de atuação de Polícia Judiciária. São Paulo: Academia de Polícia, 2020, p.61-62.

[3] BADARÓ, Gustavo. Processo penal. Rio de Janeiro: Elsevier, 2014, p.39-40.

[4] BALDAN, Édson Luís. Devida investigação legal como derivação do devido processo legal e como garantia fundamental do imputado. In: KHALED JR., Salah (coord.). Sistema penal e poder punitivo. Florianópolis: Empório do Direito, 2015, p.155-182.

[5] COELHO, Emerson Ghirardelli. Investigação criminal constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2017, p.47-48.

[6] CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de. Inquérito policial tem sido conceituado de forma equivocada. Revista Consultor Jurídico, fev.2017. Disponível em: ; MORAES, Rafael Francisco Marcondes de; PIMENTEL JR., Jaime. Polícia judiciária e a atuação da defesa na investigação criminal. Salvador: JusPodivm, 2018, p.156-162.

[7] MORAES, Rafael Francisco Marcondes de; PIMENTEL JR., Jaime. Polícia judiciária e a atuação da defesa na investigação criminal. Salvador: JusPodivm, 2018, p.205-210.

[8] Em São Paulo, a inerente independência funcional dos delegados de polícia encontra-se consolidada na Constituição Estadual (art.140,§3º) e garantida na Lei Complementar 1.152/11 pela autonomia intelectual para interpretar o ordenamento jurídico e decidir, com imparcialidade e isenção, de modo fundamentado.

[9] CUNHA, Rogério Sanches. Manual de direito penal parte especial. Salvador: JusPodivm, 2016, p.777-778.

[10] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal 4. São Paulo: Saraiva, 2007, p.121-122; STJ, HC 48.083-MG, j.20/11/2007.

[11] Resolução 43/173, de 09/12/1988.

[12] BARBOSA, Ruchester Marreiros. Função de magistratura da autoridade de polícia judiciária. In: BARBOSA, Ruchester Marreiros; et al. Polícia judiciária no Estado de Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017, p.62.

[13] HOUAISS, Antônio (1915-1999) e VILLAR, Mauro de Salles (1939-). Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva: 2001, p.603.

[14] MORAES, Rafael Francisco Marcondes de. Prisão em flagrante delito constitucional. Salvador: JusPodivm, 2018, p.160-168.

[15] Designa-se criptoindiciamento o indiciamento infundado, destituído da indispensável motivação exarada pelo delegado de polícia, expondo os elementos que o justificam (Lei 12.830/13, art.2º,§6º), expressão que suscita o neologismo criptoflagrante, derivado da aglutinação do vocábulo flagrante com o antepositivo cripto, que significa oculto ou secreto, para simbolizar a arbitrária e ilegal decretação de prisão em flagrante desprovida de fundamentação e de acervo mínimo para a justa causa (fundada suspeita – requisito probatório) ou fora das hipóteses de flagrância delitiva (requisito temporal). MORAES, Rafael Francisco Marcondes de. Prisão em flagrante delito constitucional. Salvador: JusPodivm, p.239-248; PAULA, Fernando Shimidt de. Criptoindiciamento. São Bernardo do Campo: Metodista, 2018, p.106-110.

[16] Fala-se em flagrante obtuso, como alusão a uma postura tola, para retratar leitura deturpada do artigo 304 do CPP, meramente topográfica e carente de filtro constitucional, segundo a qual o delegado de polícia deveria lavrar auto de (não) prisão em flagrante em todos os casos e de modo autômato, a despeito de não vislumbrar respaldo legal para a custódia ao avaliar o contexto fático. CABETTE, Eduardo. Do flagrante obtuso ou da pretensão de que o delegado de polícia lavre auto de “não prisão” em flagrante em qualquer caso de condução de capturado. Revista Prática Jurídica, ano XV, 176, p.6-16, nov. 2016.

[17] QUEIROZ, Carlos Alberto Marchi de. Legítima defesa e indiciamento na polícia. Campinas: Pontes, 2019, p.100.

Rafael Francisco Marcondes de Moraes é delegado de polícia de São Paulo, doutorando e mestre em Direito Processual Penal pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da Academia de Polícia de São Paulo (Acadepol).

Marcelo de Lima Lessa é delegado de polícia de São Paulo, graduado em gerenciamento de crises e negociação de reféns pelo Federal Bureau of Investigation (FBI) e professor da Academia de Polícia de São Paulo (Acadepol).

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