Projeto de Lei Anticrime e o reconhecimento de justificantes pelo delegado de polícia

O intitulado “Projeto Anticrime”, proposto pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública e protocolado na Câmara dos Deputados sob o Projeto de Lei 882/2019, tenciona modificar quatorze diplomas legais e tem repercutido no meio social e na comunidade acadêmica. (1)
Sem olvidar da relevância dos demais dispositivos que o aludido Projeto intenta alterar, o presente ensaio se concentrará em recorte acerca de tópico que trata de medidas relacionadas à legítima defesa e especificamente na mudança almejada via inserção do artigo 309-A no Código de Processo Penal (Decreto-lei 3.689/41), que cuida do reconhecimento de excludentes de antijuridicidade pelo delegado de polícia.

O aludido artigo do Projeto de Lei veicula a seguinte redação: “Se a autoridade policial verificar, quando da lavratura do auto de prisão em flagrante, que o agente manifestamente praticou o fato em qualquer das condições constantes dos incisos I, II ou III do caput do art. 23 do Decreto-lei nº 2.848, de 1940 – Código Penal, poderá, fundamentadamente, deixar de efetuar a prisão, sem prejuízo da investigação cabível, e registrar em termo de compromisso a necessidade de comparecimento obrigatório a todos os atos processuais, sob pena de revelia e prisão”.

O objetivo da proposta, no ponto em comento, consiste em sedimentar a avaliação pelo delegado de polícia de causas justificantes elencadas nos incisos do artigo 23 do Código Penal (estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento do dever legal e exercício regular de direito) quando as reputar presentes por ocasião de apresentação de indivíduo sob aparente estado flagrancial delitivo.

A depuração constitucional, atrelada aos direitos fundamentais, impõe que, longe de mera faculdade, constitui dever do delegado de polícia analisar a configuração e reconhecer, motivadamente e com independência funcional,(2) eventuais excludentes de ilicitude, porquanto não há delito quando o sujeito age em sede de descriminante, exegese advinda da literalidade do artigo 23, caput, do Estatuto Criminal, assim como da aplicação das garantias da dignidade humana, da legalidade, da presunção de não culpabilidade e do senso comum de justiça, orientação dominante na doutrina contemporânea.(3)

A iniciativa suplanta antigo olhar assistemático e isolado do parágrafo único do artigo 310 do CPP, que trata da concessão de liberdade pelo juiz de direito àquele que atua amparado em causas de exclusão, posição equivocada que limitava a apreciação da autoridade policial a um raso juízo de tipicidade da conduta do indivíduo investigado, sem considerar a antijuridicidade do fato ou a culpabilidade do agente.

A Lei Maior, ao consagrar a liberdade como regra, excepciona a custódia cautelar e imprime a seguinte leitura ao destacado dispositivo do CPP: se o delegado de polícia não reconhecer a verossímil descriminante e indevidamente autuar o agente em flagrante, a autoridade judicial, assim que cientificada, retificará o lapso e restabelecerá a liberdade, até porque o próprio CPP, em seu artigo 314, veda o cárcere preventivo diante de causas justificantes.

Anota-se que, em qualquer hipótese, deve haver escrutínio do episódio, para infirmar ou confirmar as versões sustentadas desde o limiar processual penal no âmbito do inquérito policial, até possível fase judicial se não demonstrada a legalidade no comportamento dos sujeitos implicados.

Outro relevante aspecto no texto do referido artigo 309-A do Projeto está em explicitar que a não determinação da custódia flagrancial ocorrerá ”sem prejuízo da investigação cabível”.

Nesse contexto, o afastamento da prisão em flagrante pelo delegado de polícia diante de justificantes reclama lastro probatório e elementos de convicção concretos, que evidenciem a aparente configuração da descriminante e não significa, em absoluto, deixar de investigar. A autoridade registrará os fatos, fundamentará sua decisão e determinará as providências para perscrutar o evento, que integrarão o respectivo inquérito policial instaurado por portaria.(4)

Outrossim, por se tratar de hipótese de aferição na apresentação de suspeito por prática em flagrante delito, seria adequada a adaptação do conteúdo do artigo 309-A do “Projeto Anticrime” diretamente no corpo do artigo 304 do CPP, propiciando uma atualização redacional do dispositivo que disciplina a decisão sobre a lavratura do auto prisional e estabelecendo a distinção técnica entre as etapas da captura (“prisão-captura”) e da prisão em flagrante propriamente dita (“prisão-custódia”).(5)

Aliás, o Projeto do Novo Código de Processo Penal (PLC 8.045/2010, antigo PLS 156/2009), atualmente em trâmite na Câmara dos Deputados, contém texto semelhante, conforme § 6º, do artigo 577, do substitutivo mais recente ao dispor que “o delegado de polícia, vislumbrando a presença de causa de exclusão de antijuridicidade poderá, fundamentadamente, deixar de efetuar a prisão, sem prejuízo da adoção das diligências investigatórias cabíveis”.(6)

Ademais, a apreciação de um fato, para definir sua classificação jurídica e subsunção a uma infração penal, reclama juízo sobre todos os elementos do crime. A índole da divisão entre tais elementos é exclusivamente didática, voltada à pesquisa de seu conceito analítico. A avaliação do fato é integral e abrange o evento perquirido e todos os seus elementos constitutivos, razão pela qual não há e nem poderia existir previsão legal que restrinja a análise do delegado de polícia a um superficial juízo de tipicidade.

Oportuno enfatizar que a decretação da prisão em flagrante, como espécie do gênero decisão de indiciamento, requer não apenas o estado de flagrância delitiva, seu requisito temporal, retratado em uma das modalidades dos incisos do artigo 302 do CPP, mas também a fundada suspeita, seu requisito probatório consubstanciado na justa causa (fumus commissi delicti), do § 1º, do artigo 304, do CPP, como suporte indiciário a autorizar o encarceramento extrajudicial fiel aos postulados da Carta Magna.(7)

Logo, a ausência de fundamentos sólidos e claros torna ilegal a custódia flagrancial, enseja o denominado flagrante obtuso(8) ou criptoflagrante (derivado do criptoindiciamento)(9) e obsta a lavratura do auto prisional por implicar relaxamento e responsabilização por abuso, sem prejuízo da deflagração da correlata investigação policial.

É preciso ter em mente que o comentado artigo 309-A do “Projeto Anticrime” situa-se em tópico sobre medidas afetas à legítima defesa e abrange situações como as mortes decorrentes de intervenções policiais, outrora formalizadas em documento alcunhado “auto de resistência”, com base no artigo 292 do CPP.

O “auto de resistência” gradativamente deixou de ser adotado pelas instituições de polícia judiciária, após uma série de atos normativos infralegais editados em virtude de sua associação, em determinados casos, a condutas espúrias e distorções na comunicação dos fatos, que ocultavam assassinatos cometidos por agentes estatais e em especial por policiais.(10)

Destarte, a tendência atual tem sido a formalização inicial em boletim de ocorrência circunstanciado, sob a designação “morte decorrente de intervenção policial” e o registro substitui o “auto” previsto no artigo 292 do estatuto processual criminal, com apuração via inquérito policial iniciado por portaria. Nesse registro policial são descritos os fatos de modo pormenorizado, sendo também coligidas as oitivas dos policiais e das pessoas envolvidas, apreendidas armas e objetos, requisitados exames periciais pertinentes e promovidas as demais diligências cabíveis, que instruirão o procedimento investigatório para o esclarecimento do ocorrido, como se espera em toda morte violenta.

Com efeito, a licitude de ação policial com resultado fatal exige abrigo em descriminante de estrito cumprimento do dever legal no início, que desencadeie a intervenção diante da suspeita de flagrante delito ou da abordagem de pessoa com ordem prisional pendente. Concomitante ou subsequentemente, a atitude precisa se revestir de excludente de legítima defesa própria ou de terceiro contra atual ou iminente agressão injusta do indivíduo submetido à atuação estatal.

Convém lembrar que a legítima defesa é apenas uma dentre as causas de exclusão da antijuridicidade apreciadas diuturnamente por delegados de polícia e inerentes à presidência da investigação criminal.

A título ilustrativo, qualquer policial, ao capturar pessoa em aparente estado de flagrância delitiva (flagrante compulsório) ou um particular que realize essa detenção (flagrante facultativo), priva momentaneamente a liberdade do suspeito, atitude ajustável, sob uma perspectiva de mera tipicidade, ao crime de sequestro ou cárcere privado (CP, art.148). Todavia, o agente estatal atua em estrito cumprimento de seu dever legal, enquanto o particular em exercício regular de direito (CPP, art. 301). São causas justificantes valoradas pelo delegado de polícia em sua rotina laboral e mensuradas de acordo com as circunstâncias de cada caso.

Por derradeiro, o aludido artigo 309-A do Projeto dispõe ainda que, na constatação provisória de aparente descriminante, será registrado um termo de compromisso de comparecimento aos atos processuais, sob pena de revelia e prisão.

Referida previsão acentua a imparcialidade do delegado de polícia que, se verificar durante a apuração substratos que rechacem a versão prestada pelos policiais ou por outros envolvidos, representará pelas medidas cautelares cabíveis, notadamente pela custódia provisória dos servidores investigados, sem prejuízo da decretação da prisão flagrancial nas hipóteses autorizadoras em face de notícia preliminar inidônea e inverossímil.

Não se pode desprezar que, para além dos avanços no campo legislativo, há premente necessidade de melhor capacitação e valorização dos policiais, mediante investimento em recursos humanos e tecnológicos, sobretudo na área de inteligência na investigação, a corroborar os imperativos de transparência e eficiência do Poder Público, viabilizar a contenção e a repressão de violências e reduzir riscos de danos à população e aos próprios agentes públicos.

De todo modo, assentar a apreciação de excludentes impede a banalização da custódia em flagrante e evita que seja tratada como coerção pessoal autômata e arbitrária. Reforça o controle pelo Poder Judiciário, a fiscalização pela acusação, seja pelo órgão ministerial ou por advogado constituído, assim como pela defesa, via Defensoria Pública ou procuradores particulares, acompanhadas do monitoramento pela Ordem dos Advogados do Brasil, pela imprensa e pela sociedade civil.

À luz das ponderações lançadas e a despeito das opiniões contrárias ou favoráveis ao “Projeto Anticrime”, roga-se que a discussão no Congresso Nacional consiga ser pautada em argumentos técnicos e em evidências, com consciência dos reflexos das reformas pretendidas e dos desafios em torno das agendas sobre Segurança Pública e Justiça Criminal.

Notas
(1) O PLC 882/2019 foi apresentado pelo Poder Executivo Federal em 19/02/2019, apensado ao PLC 10.372/208 em 13/03/2019 e passou a tramitar em regime de prioridade.
(2) A independência funcional é garantida aos delegados de polícia pela autonomia intelectual para interpretar o ordenamento jurídico e decidir, com imparcialidade e isenção, de modo fundamentado, prerrogativa consolidada, no Estado de São Paulo, na Constituição Paulista (art. 140, § 3º) e na Lei Complementar Bandeirante 1.152/2011 (art.1º, § § 1º e 2º).
(3) BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Processo penal. Rio de Janeiro: Elsevier, 2014. p. 730; BRITO, Alexis Couto de; FABRETTI, Humberto Barrionuevo; LIMA, Marco Antônio Ferreira. Processo penal brasileiro. São Paulo: Atlas, 2012. p. 237-238; DEZEM, Guilherme Madeira. Curso de processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. p. 316; MACIEL, Silvio; GOMES, Luiz Flávio; CUNHA, Rogério Sanches. Prisões e medidas cautelares: comentários à Lei 12403, de 4 de maio de 2011. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 138; PAGLIONE, Eduardo Augusto. A prisão em flagrante e as causas excludentes da antijuridicidade. Boletim IBCCRIM, v.15, p. 15-17, set. 2007.
(4) QUEIROZ, Carlos Alberto Marchi de. Legítima defesa e indiciamento na polícia. Campinas: Pontes Editores, 2018. p. 101-103.
(5) SAAD, Marta. Direito ao silêncio na prisão em flagrante. In: Prado, Geraldo; Malan, Diogo (Org.). Processo penal e democracia: estudos em homenagem aos 20 anos da Constituição da República de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 423-453.
(6) CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projeto de Lei 8.045 de 2010. Disponível em: . Acesso em: 01 abr. 2019.
(7) MORAES, Rafael Francisco Marcondes de. Prisão em flagrante delito constitucional. Salvador: JusPodivm, 2018. p. 160-168.
(8) Fala-se em flagrante obtuso, como alusão a uma postura rude ou tola, para retratar leitura deturpada do artigo 304 do CPP, meramente topográfica e carente de filtro constitucional, segundo a qual o delegado de polícia deveria lavrar auto de (não) prisão em flagrante em todos os casos e indiscriminadamente, a despeito de não vislumbrar respaldo legal para a custódia ao analisar o contexto fático. CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Do flagrante obtuso ou da pretensão de que o delegado de polícia lavre auto de “não prisão” em flagrante em qualquer caso de condução de capturado. Revista Prática Jurídica, ano XV, 176, Consulex, p. 6-16, nov. 2016.
(9) Designa-se criptoindiciamento o indiciamento infundado, destituído da indispensável motivação exarada pelo delegado de polícia, expondo os elementos que o justificam (Lei 12.830/13, art.2º, § 6º), expressão que suscita o neologismo criptoflagrante, derivado da aglutinação do vocábulo flagrante com o antepositivo “cripto”, que significa “oculto” ou “secreto”, para simbolizar a arbitrária e ilegal decretação de prisão em flagrante desprovida de fundamentação e de acervo mínimo para a justa causa (fundada suspeita – requisito probatório) ou fora das hipóteses de flagrância delitiva (requisito temporal). MORAES, Rafael Francisco Marcondes de. op. cit., p. 239-248; PAULA, Fernando Shimidt de. Criptoindiciamento. São Bernardo do Campo:Universidade Metodista de São Paulo, 2018. p. 106-110.
(10) A Resolução 8/2012, do Conselho de Direitos de Defesa da Pessoa Humana, à época da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, recomenda às autoridades não empregarem as nomenclaturas “auto de resistência” e “resistência seguida de morte”. Já a Resolução Conjunta 2/2015, do Conselho Superior de Polícia do Departamento de Polícia Federal e do Conselho Nacional dos Chefes da Polícia Civil, dispõe sobre procedimentos nas mortes decorrentes de intervenção policial e a Portaria 229/2018, do Ministério da Segurança Pública, cita, em seu artigo 3º, inciso V, a expressão “morte por intervenção de agente do Estado”.


Rafael Francisco Marcondes de Moraes
Doutorando e Mestre em Direito Processual Penal pela Universidade de São Paulo (USP).
Professor concursado da Academia da Polícia Civil do Estado de São Paulo (Acadepol). Delegado de Polícia.

Últimas publicações

Navegue por

[postporcategoria]

Publicações por data

Arquivos

teste

Sindpesp na Mídia

Menu