1. Introdução:
O presente texto buscará delinear alguns aspectos referentes à concretização de Direitos Humanos por meio da atuação da Polícia Judiciária, demonstrando que a missão policial não se aparta do mais absoluto respeito às garantias fundamentais do cidadão, mas sim, ao contrário, fomenta a sua promoção através de seu mister.
Além disso, cuidar-se-á de lançar pequeno feixe de luz sobre a situação de vitimização policial e o atual cenário ao qual os policiais brasileiros encontram-se submetidos, na tentativa de que este esforço traga à baila a situação periclitante vivenciada nas polícias de todo Brasil.
2. Direitos Humanos e Polícia Judiciária:
Vigora no Brasil um odioso ranço preconceituoso de que a atividade policial é antagônica ao respeito dos Direitos Humanos do cidadão. Tal prenoção não condiz com a missão constitucional das instituições responsáveis pelo zelo à segurança pública no Estado Democrático de Direito brasileiro e, em absoluto, não se harmoniza com a realidade.
Para Acácia Hagen (2006, p. 229 apud SCHABBACH, 2011, p. 4), esta relação tormentosa teria sido reforçada pela história recente do país e das narrativas de abusos policiais experimentados na vigência do regime militar. Assim, “o peso desta história sobre a imagem da polícia brasileira, apesar de todas as mudanças pelas quais passou o país nos últimos 20 anos, não pode ser desprezado”.
O século passado viu surgir em toda América Latina regimes militares, tendo como ponto de deflagração e pano de fundo a luta contra o crescimento do comunismo. Notadamente no Brasil, Argentina, Chile, Paraguai, Uruguai e Bolívia, nações que chegaram a traçar um acordo de cooperação mútua, um verdadeiro consórcio internacional de órgãos de repressão foi formado com o objetivo de coibir em conjunto a dissidência política no Cone Sul, a chamada “Operação Condor” (LÍRIO, 2017).
Esse período da história do continente latino-americano foi marcado por relatos de violações a direitos, prisões políticas e censura. Ações das forças armadas e das polícias assumiram protagonismo no processo de manutenção dos regimes autoritários, ao passo que as organizações de defesa de direitos humanos eram vistas como “defensoras dos presos”.
A partir do fim do regime militar e da aurora do Estado Democrático, com o advento da Constituição de 1988, mostrou-se fundamental para o exercício democrático da atividade estatal que se operasse rompimento na relação dicotômica entre as instituições policiais e direitos humanos.
Passou-se a ser necessária uma mudança de paradigma nas políticas estatais de segurança pública, englobando não só a defesa dos direitos humanos, como, também, sua promoção (SCHABBACH, 2011, p. 2).
A partir de então, novas diretrizes coibiram o uso desmedido da força, fomentando e capacitando o profissional para atuações legalmente legítimas e taticamente adequadas, com o objetivo de proteger a integridade física do cidadão, objeto da intervenção, e do policial em ação.
Há um antigo lema na Polícia Civil do Estado de São Paulo, popular entre as fileiras que compõem a instituição, por meio do qual diz-se que “a cortesia não compromete a valentia”. Essa frase resume precisamente qual tem sido a linha mestra que deve conduzir a execução das diligências policiais.
Nesta linha, Lúcia Lemos Dias (2011):
Na perspectiva jurídica, o marco inicial do processo de mudança da concepção de Segurança Pública brasileira tem como referência a Constituição de 1988 na qual, pela primeira vez, o tema foi tratado, constitucionalmente, de forma específica e associado à noção de direito, embora não dissociado do papel das Forças Armadas. Em termos de agenda governamental, a Segurança Pública passou a ser associada aos Direitos Humanos em 1996, em decorrência dos reclamos da sociedade civil e devido à exploração abusiva do uso da força/violência, caracterizado como violação estatal dos Direitos Humanos por parte de policiais. No bojo desse processo o Governo Federal criou uma Política Nacional de Direitos Humanos, focalizada, principalmente, na preservação das liberdades civis.
Desde a reabertura democrática no Brasil, após os anos de chumbo da Ditadura Militar (01.04.1964 – 15.03.1985), duas concepções de segurança pública rivalizam no texto constitucional brasileiro: a ideia centrada no combate ao crime e a prestação de serviço público (SOUZA NETO, 2009, p. 4-5). Assim, a primeira alcança a missão institucional das polícias sob sua faceta bélica, relacionando-se com o combate aos criminosos, enquanto inimigos internos da sociedade e do Estado Democrático.
Por seu turno, uma segunda visão entende a segurança pública como um serviço público a ser prestado pelo Estado, figurando o cidadão como seu destinatário imediato. Neste aspecto, não há um inimigo a ser combatido, mas sim o cidadão a ser servido, inserindo-o no cerne das atenções das políticas estatais de segurança pública (VERGAL, 2015, p. 129).
Esta é a ideia de uma polícia democrática, não discriminatória ou arbitrária, cujas ações orientem-se pelas balizas instituídas pelos parâmetros constitucionais dos direitos e garantias individuais. Tal concepção prega e estimula a participação popular na gestão da segurança pública, privilegiando a transparência institucional como meio legítimo de controle externo pelo cidadão comum:
A polícia democrática não discrimina, não faz distinções arbitrárias: trata os barracos nas favelas como “domicílios invioláveis”; respeita os direitos individuais, independentemente de classe, etnia e orientação sexual; não só se atém aos limites inerentes ao Estado democrático de direito, como entende que seu principal papel é promovê-lo. A concepção democrática estimula a participação popular na gestão da segurança pública; valoriza arranjos participativos e incrementa a transparência das instituições policiais. Para ela, a função da atividade policial é gerar “coesão social”, não pronunciar antagonismos; é propiciar um contexto adequado à cooperação entre cidadãos livres e iguais. O combate militar é substituído pela prevenção, pela integração com políticas sociais, por medidas administrativas de redução dos riscos e pela ênfase na investigação criminal. A decisão de usar a força passa a considerar não apenas os objetivos específicos a serem alcançados pelas ações policiais, mas também, e fundamentalmente, a segurança e o bem-estar da população envolvida. (SOUZA NETO, 2009, p. 5-6)
Metaforizando esta dicotomia como as margens de um rio caudaloso e de águas revoltas, o texto da Constitucional não se estabeleceu em qualquer dessas margens, não adotando nem um modelo, nem outro. Ao tratar do tema, estabeleceu que a finalidade das políticas de segurança seria a preservação da incolumidade das pessoas e de seu patrimônio. Contudo, manteve as atribuições da polícia militarizada, subordinadas ao governo estadual, porém previstas como “forças auxiliares e reservas do Exército” (art. 144, § 5º).
O Estado Democrático de Direito deve esmerar-se na edificação de uma ordem pública democrática, calcada nos ideais republicanos, estruturada pela Constituição Federal e seguida pela produção legislativa infraconstitucional responsável. Afinal, a preservação da ordem pública nada mais é do que preservação do próprio direito, da ordem jurídica, da garantia da legalidade e da liberdade.
A preocupação com os órgãos encarregados pela segurança pública em um governo democrático deve ser encarada de forma indubitavelmente séria, pois a atuação dessas instituições estabelece contato direto com a população e seus problemas. “Por isso, não é a Polícia apenas mais um órgão do Estado. É, sim, uma daquelas instituições imprescindíveis, que não podem faltar a qualquer sociedade politicamente organizada (MORAES, 2008, p. 33).
O trato com a Segurança Pública assume novo relevo no texto constitucional de 1988, passando a primar pela convivência pacífica e harmônica entre os seres humanos, pautando-se na dignidade da pessoa humana, enquanto fundamento do Estado brasileiro, e demais valores jurídicos e éticos considerados imprescindíveis à coexistência social. Afastando-se, assim, da ideia de Segurança Nacional, a qual pende muito mais para a segurança do Estado e do regime governamental.
Os órgãos encarregados da Segurança Pública foram forjados de modo a promover a proteção do “cidadão do próprio cidadão que transgrediu as normas de conduta” (FÉ, 2012, p. 28). Seu agir deve contemplar os princípios constitucionais explícitos e implícitos, bem como os objetivos fundamentais da própria República Federativa do Brasil, de modo a “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
A função da polícia passa a ser a manutenção da ordem pública, da liberdade, da prosperidade e da segurança individual. Entretanto, suas ações não podem se afastar das diretrizes instituídas pela dignidade da pessoa humana, pilar do Estado Democrático de Direito, estabelecendo suas balizas em conformidade com o regramento constitucional e os tratados internacionais pertinentes à matéria.
José Alaya Lasso (2001, p. V-VI), Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, no prefácio à obra “Direitos Humanos e Aplicação da Lei – Manual de Formação em Direitos Humanos para as Forças Policiais”, ao tratar das consequências do descumprimento das leis por parte das forças policiais, ajusta que o resultado da violação das normas jurídicas pelos responsáveis pela sua aplicação não configura apenas um atentado à dignidade humana e à própria lei, também ergue barreiras à eficaz atuação policial.
Com isso, as violações da lei por parte das forças policiais possuem múltiplos efeitos de cunho prático, como a diminuição da confiança do povo nas instituições e o seu distanciamento da população. Ademais, acabam por abalar a bom andamento da persecução penal, prejudicando a efetiva aplicação da norma penal pelo Poder Judiciário.
O isolamento da Polícia da comunidade é um fenômeno moderno dos mais indesejáveis, pois é através dele que surgem os alarmantes números da “cifra negra” da criminalidade (zona obscura, “dark number” ou “ciffre noir”). Refere-se ao percentual de delitos que não solucionados ou punidos, muitos deles ao menos chegam ao conhecimento das autoridades públicas, motivo pelo qual as estatísticas oficiais devem ser analisadas e interpretadas com primoroso zelo crítico.
De acordo com Alessandro Baratta (1999, p. 101), as pesquisas criminológicas acerca da “cifra negra” lançaram luz sobre o método e o valor das estatísticas criminais e sua interpretação. Esta análise crítica mostra-se fundamental para o conhecimento objetivo do comportamento desviante penalmente perseguível em dada comunidade, resultando em uma nova visão do fenômeno criminal, pelo qual:
A criminalidade não é um comportamento de uma restrita minoria, como quer uma difundida concepção (e a ideologia da defesa social a ela vinculada), mas ao contrário, o comportamento de largos estratos ou mesmo da maioria dos membros de nossa sociedade” (1999, p. 103)
Ao conceber que o crime é um fenômeno social, ínsito ao ser humano e à sociedade, as políticas públicas na área da Segurança Pública devem estar lastreadas em sérios estudos científicos, que entendam e respeitem a complexidade do tema e não somente em vazias medidas hollywoodianas, tentativas pífias de demonstração do poder estatal através do uso da força e da mera figuração ostensiva (VERGAL, 2015, p. 139).
Contrariamente ao senso comum, difundido em tantos programas televisivos “policialescos”, o respeito aos Direitos Humanos não comprometem a eficácia das ações, afinal de contas, cortesia não compromete a valentia. O acatamento das normas instituidoras dos Direitos Fundamentais do homem é imperativo ético e legal ao Poder Público, enquanto meio adequado para a construção de uma estrutura de aplicação da lei humana, rechaçando sistemas impostos pelo medo e pela força bruta.
Lembremo-nos, novamente, das lições de John Locke instituídas no “Segundo Tratado do Governo”:
Abandonando a razão, que é a regra dada entre homem e homem, e usando a força, à maneira das bestas, ele se torna sujeito a ser destruído por aquele contra quem ele usa força, como qualquer voraz besta selvagem que é perigosa a sua pessoa (LOCKE, p. 239, acesso em: 24.08.2014).
Enaltecendo este apreço fundamental aos Direitos Humanos, o “Manual de Formação em Direitos Humanos para as Forças Policiais”, destaca alguns princípios éticos que devem conduzir a conduta policial, sinalizando, logo em seu primeiro item, que direitos humanos derivam da dignidade inerente à pessoa humana e que todas as atividades de polícia deverão respeitar os princípios da legalidade, necessidade, não discriminação, proporcionalidade e humanidade.
Conforme acentua Lúcia Lemos Dias, durante os últimos anos do século XX no Brasil o debate sobre a Segurança Pública estabeleceu-se no plano político, um “problema social que preocupa a todos, passando a ocupar o espaço público, através de variados atores sociais ou entes institucionais” (2011).
Somente através de enfoque sério, será possível se chegar a um mínimo controle da criminalidade. Faz-se necessário que o Estado desenvolva mecanismos capazes de conferir eficácia ao Direito Fundamental Social à Segurança Pública eficiente, alicerçados em austeros estudos científicos e mantendo debate aberto com a sociedade civil.
Mais do que isso, o direito do cidadão à Segurança Pública eficiente integra o núcleo mínimo existencial da dignidade humana em sociedade. Sendo assim, o ideário da construção de um meio social justo e seguro, capaz de abrigar uma vida digna sempre se fez presente no horizonte humano, ou seja, a segurança é pilar e sustentáculo da dignidade, integrando o núcleo intangível dos direitos que compõem o mínimo existencial de respeitabilidade (VERGAL, 2015, p. 136).
O Supremo Tribunal Federal possui diversas pontuações em que o caráter fundamental do direito à Segurança Pública é ressaltado, revelando a necessidade imperativa da atuação estatal positiva nesta seara. Dentre estes precedentes, destaca-se o seguinte fragmento do RE 559.646-AgR, de relatoria da Ministra Ellen Gracie:
O direito a segurança é prerrogativa constitucional indisponível, garantido mediante a implementação de políticas públicas, impondo ao Estado a obrigação de criar condições objetivas que possibilitem o efetivo acesso a tal serviço. É possível ao Poder Judiciário determinar a implementação pelo Estado, quando inadimplente, de políticas públicas constitucionalmente previstas, sem que haja ingerência em questão que envolve o poder discricionário do Poder Executivo. (RE 559.646-AgR – Relª. Minª. Ellen Gracie – j. em 07.06.2011 – 2ª Turma – DJE de 24.06.2011)
Nesse processo de estruturação de uma nova polícia e de uma relação harmoniosa entre a população e a segurança pública, é enorme a importância do ensino policial, por meio da formação e atualização profissional nas Academias de Polícia. Isso colabora para que haja, sobretudo, a construção de uma doutrina policial brasileira, que esteja atenta à nossa realidade social e que respeite as particularidades de nosso povo.
Ademais, Ricardo Balestreri, ex-integrante da Anistia Internacional e ex-secretário nacional de segurança pública no período compreendido entre julho de 2008 e dezembro de 2010, defende a necessidade da aproximação dos órgãos estatais e das organizações não governamentais de defesa de direitos humanos:
[…] se queremos, um dia, viver uma verdadeira cultura de cidadania e direitos humanos, precisamos ir além da acusação, somando esforços pela construção de um novo modelo de segurança pública […] zelar, pois diligentemente, pela segurança pública, pelo direito do cidadão de ir e vir, de não ser molestado, de não ser saqueado, de ter respeitada sua integridade física e moral, é dever da polícia, um compromisso com o rol mais básico dos direitos humanos que devem ser garantidos à imensa maioria de cidadãos honestos e trabalhadores (BALESTRERI, 1998, p. 21)
Para que essa proximidade se efetive, Balestreri (1998, p. 25) sustenta que a nação deve respirar “cultura de cidadania”, fazendo-se necessário para isso que as lideranças do campo dos Direitos Humanos e as polícias desarmem suas “minas ideológicas”, o que propicia aprendizado mútuo e atuação como defensores da mesma democracia.
Existe uma imprecisão no que se refere a um conceito de Direitos Humanos. No entendimento de João Batista Herkenhoff (2002, p. 30), são
[…] aqueles direitos fundamentais que o homem possui pelo fato de ser homem, por sua natureza humana, pela dignidade que a ela é inerente. São direitos que não resultam de uma concessão da sociedade política. Pelo contrário, são direitos que a sociedade política tem o dever de consagrar e garantir.
Como dito, a nova ordem jurídica, inaugurada pela Constituição Federal de 1988, impôs a todo universo jurídico sua adaptação aos ditames impostos pelos Direitos e Garantias Fundamentais esculpidos no texto constitucional, levando a atividade investigativa à mudança.
Exemplo disso se deu quando estabeleceu-se constitucionalmente que as diligências de busca e apreensão deveriam ser precedidas de mandado expedido por Autoridade Judicial, sendo que anteriormente era suficiente a presença do Delegado de Polícia para que fosse possível a entrada dos policiais nas residências suspeitas. A Polícia Judiciária não deixou de realizar diligências de busca e apreensão, apenas teve que se adequar às exigências dos novos tempos e prosseguir em suas atividades (VERGAL, 2016).
A polícia corresponde ao serviço estatal mais próximo do cidadão. Em razão dessa vicinalidade, impõem-se às Autoridades Policiais que se mostrem receptivos aos avanços trazidos pela legislação que conduzam à maior lisura de seus atos, coadunando-se ao vetor do respeito absoluto às garantias fundamentais, em consonância com os ditames erigidos pela doutrina penal garantista. Mudar sim, desde que os ventos da mudança venham para somar esforços em favor da sociedade, sem jamais servir para diminuição de garantias que ofusquem os imperativos de respeito à cidadania e dignidade humana, enquanto fundamentos da República Federativa do Brasil (VERGAL, 2016).
Os tempos atuais infligem que a investigação policial revista-se em instrumento garantista, capaz de ponderar a relação processual, sem causar prejuízo à eficácia da persecução penal. Afinal de contas, o Garantismo Penal nada mais é do que o Direito Penal da Democracia, em sintonia com o respeito à dignidade humana e aos direitos fundamentais. Para isso, é necessário o rompimento de preconceitos e ideias equivocadas, como esta falácia de que o inquérito policial é um instrumento a serviço da acusação e não como um “elemento neutro e imparcial de apuração da verdade” que realmente é (CABETTE, 2002, p.138).
Incumbe ao poder público a manutenção dos órgãos e instituições responsáveis pela proteção de seus cidadãos e de seus direitos. Nesta esteira, o artigo 144 da Constituição Federal determina que o compromisso com a segurança pública não é exclusividade estatal, incumbindo a todos os cidadãos contribuírem neste sentido. Todavia, é claro que a função primordial será do Estado, por meio dos órgãos constitucionalmente insculpidos, cada qual atendendo ao seu múnus público.
Este texto evidenciará, exclusivamente, o trabalho das Polícias Civis e Federal, às quais incumbem as funções de polícia judiciária e apuração de infrações penais. Deste modo, não teceremos maiores comentários sobre a atuação das polícias ostensivas, as quais, sem dúvida alguma, também devem guardar zelo pelo respeito aos direitos fundamentais do cidadão. Nosso enfoque, por ora, será outro.
Enquanto ofício, ser policial no Brasil é tarefa das mais hercúleas, diante das precárias condições de trabalho, salários baixos e defasados, deficiência em sua formação ante as complexas dificuldades impostas diariamente. Nas palavras de Morais Júnior (2005, p. 91 apud SCHABBACH, 2011, p.6), “as instituições policiais encontram-se, de certa maneira abandonadas, atuando como sendo a única instituição estatal que atinge a todas as camadas da população, quanto na consideração de culpa pelo crescimento da violência”.
De acordo com dados do Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo[1], tomando por base dados publicados no Diário Oficial do Estado de São Paulo, até o dia 18 de janeiro de 2018, havia defasagem de 12024 cargos policiais no Estado de São Paulo. Este quadro não é diferente em outros estados da federação, como no Espírito Santo em que existe um policial civil para cada 1700 habitantes[2]; ou mesmo no Rio de Janeiro, em que a quantidade de policiais civis é quase 60% inferior ao ideal[3].
Conforme fala do Ministro da Defesa, Raul Jungmann, em 31 de janeiro de 2018, denota-se o caos instalado nas instituições de segurança pública no Brasil. Jungmann chega ao ponto de afirmar que o “sistema vigente está falido”, indicando a superlotação dos presídios, a transnacionalização do crime organizado e a falta de recursos orçamentários e financeiros canalizados à área como fatores agravantes desta condição.
Este panorama evidencia a faceta do abandono pelo qual as polícias judiciárias vêm passando atualmente no Brasil. Esta negligência desemboca em (enormes) prejuízos ao cidadão comum, pois dificulta o bom andamento das investigações em curso e gera morosidade no atendimento. Eis uma hipótese de violação clara aos direitos humanos do cidadão, pois a segurança pública, conforme aduz o texto constitucional, é direito e responsabilidade de todos e, principalmente, dever do Estado.
O estudo “O herói envergonhado: tensões e contradições no cotidiano do trabalho policial”, conduzido pelo professor da Fundação Getúlio Vargas, Rafael Alcadipani, e por Cinthia Rodrigues, professora da Universidade Federal de Uberlândia, junto de 305 policiais civis de todo o país que responderam a um questionário online, mostra que:
Os policiais atribuem ao trabalho o significado de heroísmo, dignidade e honra, mas, ao mesmo tempo, sentem-se envergonhados, pois trabalhar como policial é viver com medo, em perigo e colocar-se em risco. São reconhecidos pelo que fazem, porém, sentem-se também amaldiçoados pela população, pela imprensa e pelas instituições. Sentem-se parte de uma família unida, no entanto, percebem o ambiente de trabalho como hostil, tenso, hipócrita, cheio de inseguranças e riscos. Além disso, sentem que fazem o papel de lixeiro social, enxugam o gelo, vivem de ilusão e sentem-se ludibriados por seus empregadores (2016, p. 148)
Trazendo cores mais sombrias ao cenário do serviço policial brasileiro, em dados estabelecidos pela Ordem dos Policiais do Brasil[4], no ano de 2017 faleceram 542 policiais de forma violenta no país, em serviço ou em decorrência da profissão, número que supera as 324 mortes de 2016.
Quando se inicia uma abordagem acerca de violações a Direitos Humanos e à atividade policial, é comum que o ângulo seja sob a óptica de eventuais maus feitos e abusos cometidos por policiais, o que deve ser combatido e punido nas esferas penal, civil e administrativa. Porém, pouco se fala do policial e demais agentes de segurança pública como vítima de violações aos seus Direitos Humanos.
Segundo os dados trazidos pela pesquisa “O que pensam os profissionais da segurança pública no Brasil”, publicada pela Secretaria Nacional de Segurança Pública e Ministério da Justiça, foram identificadas violações referentes às condições de trabalho e política salarial, além de discriminação por sua função, gênero e convicção política, acusações injustas e desrespeito pelas corporações. Dentre os números apresentados destacamos os seguintes processos de vitimização (SOARES; ROLIN; RAMOS, 2009, p.4):
- a) 41,8% foram ameaçados de morte ou violência física por pessoa condenada ou suspeita de atividade ilícita;
- b) 22,2% foram vítimas de acidente de trânsito em serviço;
- c) 18,9% sofreram violência física em serviço;
- d) 2,6% foram alvejados em serviço.
Nesta perspectiva, em março de 2018, o Sindicato e a Associação dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo ingressaram com pedido de providências junto à Organização Internacional do Trabalho denunciando o dano existencial que pode estar atingindo os policiais, face a não limitação de jornada e a falta de condições adequadas de trabalho[5].
Os escassos recursos humanos e materiais evidenciam a precariedade em que os (valorosos) policiais brasileiros labutam em todo país para exercer suas atividades. O respeito do Estado pela dignidade da pessoa humana e pelos direitos fundamentais deve se iniciar no âmago do próprio organismo estatal. Como exigir que um profissional que não é tratado com o devido respeito por parte de seus superiores atue de forma diferente para com a população?
A professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Letícia Maria Schabbach, em trabalho publicado no XV Congresso Brasileiro de Sociologia “Mudanças, Permanências e Desafios Sociológicos”, realizado na cidade de Curitiba nos dias 26 a 29 de julho de 2011, publicou o trabalho intitulado “Com as lei debaixo do braço: direitos humanos e trabalho policial”. O artigo desfila as representações sociais de policiais civis do Estado do Rio Grande do Sul, submetidos à questionário acerca da relação do trabalho policial e os direitos humanos. A análise descritiva destes dados oferece um interessante prognóstico acerca de como pensam os policiais brasileiros.
Quando perguntados “como o policial deve agir para promover os direitos humanos?”, 78% focaram suas respostas nas atribuições básicas, como “agir dentro da lei”, “com respeito e/ou justiça”, “com competência profissional”. Por outro lado, todos os policiais afirmaram promover os direitos humanos em seu trabalho, ao cumprirem as leis, agirem com profissionalismo, prestarem bom atendimento, esclarecerem quanto a direitos e deveres, tratando todos com respeito e dignidade. Dois policiais, em sua vez, mencionaram que praticam os direitos humanos quando não excedem o exercício da função, “não usando da força desnecessária, cuidando da família dos presos” (SCHABBACH, 2011, p. 15/16).
Interessantes são as informações que podem ser aduzidas através da leitura das respostas para a pergunta “Direitos humanos é coisa de polícia? Por que?”:
- a) 22 entrevistados (50% dos pesquisados) responderam que sim, sendo que 18 acrescentaram que fazem parte da atuação policial e outros 3 acrescentaram que são, também, extensivos ao policial, como cidadão e profissional;
- b) 13 entrevistados entre respostas afirmativas e negativas disseram que direitos humanos não são apenas da polícia, mas que envolvem toda a sociedade;
- c) 8 entrevistados negaram que os direitos humanos fossem coisa de polícia, explicando que “não é sua tarefa”, um deles chegando a responder “não, porque não somos assistentes sociais”.
A pesquisadora reputa que, neste último caso, os respondentes ou não entenderam o sentido da questão ou são, de fato, críticos da noção de que os direitos humanos são “coisa de polícia”.
Outro ponto a ser destacado se dá a partir da opinião dos policiais sobre as ONGs de defesa dos direitos humanos: “as opiniões positivas e negativas dividem-se em proporções iguais, de 38%. Outros 19% manifestaram apoio parcial, tal como nestes depoimentos, que revelam, nas entrelinhas, uma visão crítica sobre a atuação destas entidades” (SCHABBACH, 2011, p. 18).
Quando perguntados sobre se as organizações de defesa dos direitos humanos preocupavam-se exclusivamente com os direitos dos criminosos presos, 61% dos policiais colocaram-se em posição intermediária, não concordando ou discordando totalmente. Concluiu-se, então, que a universalidade dos direitos humanos e atuação positiva das ONGs de defesa não são consensuais (SCHABBACH, 2011, p. 19).
É importante que acordemos para o que urge no momento atual brasileiro: a edificação de uma estrutura nova de segurança pública, atenta aos anseios sociais democráticos, onde o respeito aos direitos fundamentais do cidadão, seja ele vítima, investigado, réu ou policial, consubstancie-se sempre como sendo o âmago de toda e qualquer preocupação do Estado.
3. Conclusão:
Com o advento da atual Carta Constitucional da República Federativa, o Brasil viu florescer um novo tempo, onde não mais seriam admitidos ataques à democracia e aos direitos individuais. Para tanto, toda estrutura estatal foi compelida à mudança e adaptação a esses novos ditames.
No entanto, este processo de evolução e adequação não se encontra estanque ou mesmo finalizado, ao contrário, o momento é de estruturação e edificação de um novo modelo estatal brasileiro, no qual o respeito à dignidade humana deve ser a viga mestra e sustentáculo de toda atuação.
Da mesma forma, o arcabouço que compõe a persecução penal também foi conduzido a novos tempos, assumindo contornos garantistas, posicionando-se em defesa das garantias e ao lado do cidadão, não funcionando como aparelho a serviço do Estado, mas sim empenhando-se na salvaguarda popular e na defesa do Estado Democrático de Direito.
Entretanto, atualmente, nosso ordenamento jurídico processual penal ainda causa, em especial no âmbito da atuação policial, embaraço à efetivação de garantias e direitos fundamentais do cidadão. Dentro de uma democracia constitucional deve-se abandonar a ideia do investigado figurando como mero objeto da investigação, mas como sujeito de direitos. Além dele, a vítima também deve ser protegida, assistida e ter sua voz ouvida, conferindo resposta estatal efetiva às violações, evitando que estas sejam novamente vitimizadas, desta feita pela burocracia morosa e a consequente ausência de tutela aos bens jurídicos.
A posição do Delegado de Polícia no arranjo da persecução penal brasileira coloca-o próximo ao calor dos eventos, impondo rápida, imparcial e precisa análise jurídica quando os envolvidos nos fatos ainda encontram-se severamente atingidos pelos efeitos oriundos da prática delituosa.
As primeiras deliberações exaradas pelas Autoridades Policiais produzirão enormes efeitos na vida das pessoas implicadas (vítimas, testemunhas, investigados etc.). Por essa razão, esses atos administrativos deverão encontrar lastro e fundamentação nos princípios e dispositivos basilares que norteiam o desempenho das práticas oficiais.
Portanto, o Delegado de Polícia, enquanto estudioso, aplicador da ciência jurídica, garantidor do respeito aos direitos fundamentais do cidadão, integrante das carreiras elementares ao exercício da justiça no Brasil, deve cuidar não somente da pesquisa técnica em sua área de conhecimento, mas, acima de tudo, deve buscar, a todo custo, a concretização diária do Direito no meio social em que se encontra inserido.
O Direito deve servir ao seu povo, entender seus anseios, proteger seus bens jurídicos mais caros, zelar e vigiar para que as garantias fundamentais do cidadão permaneçam intocadas, não permitindo (jamais) retrocessos sociais ou jurídicos de natureza antidemocrática.