No exercício da atividade de polícia judiciária, não raro o Delegado de Polícia se depara com limitações ilegítimas que inibem sua faculdade de interpretação e de criação de teses e até – por que não? – de jurisprudência. Há uma doutrina desarrazoada difundida que faz crer que não pode o Delegado inovar. Deve ele decidir dentro de um paradigma que cerceia sua reconhecida excelência jurídica. Não pode o Delegado reconhecer excludentes; não pode o Delegado interpretar a Lei; deve o Delegado prender; etc.
É, assim, o Delegado tratado como mero analista de notícia de crime, um registrador de ocorrências.
Entender dessa maneira, desconsidera que a atividade de polícia judiciária possui papel essencial na persecução penal, visto que, em regra, a investigação fundamenta a denúncia do Ministério Público e até mesmo a sentença do magistrado.
É o Delegado de Polícia a primeira autoridade a conhecer o fato criminoso, tendo a atribuição de analisá-lo juridicamente, a fim de promover a investigação criminal e a pacificação social.
O inquérito policial é, antes de tudo, um instrumento de realização dos ditames constitucionais, uma vez que, não sendo o Delegado de Polícia parte, por meio da busca da verdade, atua na defesa dos direitos e garantias individuais.
Em consonância com o artigo 2º, da Lei nº 12.830/2013, “as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais exercidas pelo delegado de polícia são de natureza jurídica, essenciais e exclusivas de Estado”.
De acordo com o mesmo texto legal, o indiciamento passou a ser ato fundamentado, conforme se observa no parágrafo 6º do artigo 2º do referido diploma: “o indiciamento, privativo do delegado de polícia, dar-se-á por ato fundamentado, mediante análise técnico-jurídica do fato, que deverá indicar a autoria, materialidade e suas circunstâncias”.
Sendo o Delegado de Polícia uma Autoridade, com formação técnico-jurídica, que profere atos com natureza decisória, todos fundamentados, não cabe limitar sua atuação na persecução penal. É por meio da fundamentação que o Delegado torna transparente e legal sua interpretação jurídica dos fatos, efetivando direitos.
Com efeito, a investigação instrumentaliza a função do Delegado e a aplicação dos direitos fundamentais por ele evita procedimentos desnecessários. É assim a investigação criminal parte de uma ação garantidora de direitos, que tem por fundamento a busca da verdade e não uma pretensa preparação para um procedimento condenatório, como preleciona a visão monocular da doutrina inquisitorial da investigação criminal.
Em razão da evolução dos direitos fundamentais, dentro da nova ordem jurídica constitucional, não é outro o papel da Polícia Civil senão o de pacificadora social e de garantidora de direitos. De fato, não há como reduzir as atribuições da Polícia Judiciária à investigação criminal. São seus agentes os únicos a ter contato com os fatos concretos e com os atores da dinâmica de interesse para o Direito. Por essa razão, encontram-se habilitados para interpretar os fatos, aplicar a lei, entender pela existência de excludentes e, ainda, para realizar atividades de mediação de conflitos decorrentes das infrações criminais de menor potencial ofensivo.
Toda a sua atuação tem como corolário o princípio da devida investigação legal, concebido como o conjunto de direitos regentes da investigação policial que garantem a efetivação de direitos fundamentais a todas as partes relacionadas ao fato investigado.
A Constituição Federal de 1988 simboliza a transição do regime ditatorial na atuação do Delegado de Polícia. Entretanto, seu conteúdo material tornou-se insatisfatório para a resolução dos conflitos da sociedade contemporânea.
O atendimento à força normativa da Constituição demanda harmonização entre as normas constitucionais, as cláusulas gerais, os princípios e as diferentes pretensões protegidas pelo texto constitucional. Esses conflitos não são exclusivos da fase processual, porém. Surgem, em regra, na fase pré-processual. Ou seja, na Delegacia de Polícia, demandando, portanto, a judicialização do inquérito, tornando-se, assim, campo fértil para o ativismo policial, ante à primazia da concretização dos direitos e garantias fundamentais, por parte da Autoridade Policial.
O princípio da dignidade da pessoa humana demanda uma atuação do Delegado de Polícia comprometida com a realização dos valores constitucionais, de modo a ser o filtro garantista dos fatos que ingressam em solo policial. Trata-se da postura ativista dos Delegados de Polícia.
Em sentido amplo, a Constituição é o filtro axiológico do sistema jurídico e de todo sistema processual e o Delegado de Polícia – como primeiro garantidor dos Direitos Fundamentais – é o seu primeiro intérprete, devendo, de maneira ativa, assegurar os valores constitucionais.
Processo Penal Democrático é aquele em que há observância dos direitos, impedindo arbítrios e ineficiência. Para tanto, é preciso que haja atribuição de relevo à atuação do Delegado de Polícia, por ser este o operador do Direito que recepciona a demanda em seu local de trabalho e a prepara para a persecução penal. Há que se ascender a figura do Delegado de Polícia, para que este exerça seu papel constitucional, assegurando a democracia e os direitos fundamentais, sem desconsiderar os anseios da sociedade.
Postula-se assim, sem que se ultrapassem os limites da segurança jurídica, uma atuação proativa por parte dos Delegados de Polícia, quer seja interpretando a Lei, quer seja na condução dos procedimentos presididos por ele.
A incompetência do Estado para lidar com os problemas do nosso sistema de justiça criminal abre uma margem perigosa para soluções imediatistas. A relativização de direitos e garantias fundamentais é uma delas. Em contrapartida, o fortalecimento das instituições de Polícia Judiciária representa uma escolha legítima. Com a ampliação das prerrogativas e atribuições do Delegado de Polícia, garante-se o direito das partes de forma rápida, atendendo às soluções dos litígios e às necessidades oriundas da limitação do Poder Judiciário.
São Paulo, 10 de dezembro de 2017.