Cotidianamente, chegam às unidades de polícia judiciária ocorrências relatando eventuais infrações penais, devendo o Delegado de Polícia examinar detalhadamente cada fato exposto e avaliar se estão ou não presentes os elementos da infração penal e, ainda, se esta foi ou não praticada pela pessoa indicada.
Em regra, esses fatos são levados por milicianos, demais agentes de polícia e, até mesmo, pela própria sociedade, ou seja, por pessoas sem ou com superficial conhecimento técnico jurídico.
Diante desse contexto, não por outro motivo, a Lei 12.830, de 20 de junho de 2013, em seu artigo 3º, estatui que “o cargo de delegado de polícia é privativo de bacharel em Direito”, exigindo-se assim, capacidade científica especializada no primeiro juízo crítico quanto à materialidade e autoria do suposto fato contrário ao ordenamento jurídico penal apresentado para análise.
Não é demais ressaltar que a Constituição Federal de 1988 e legislação pátria reservaram ao Delegado de Polícia a direção dos órgãos incumbidos pelas funções de polícia judiciária e apuração das infrações penais não militares.
Nesse diapasão, ao avaliar as notícias supostamente violadoras do sistema penal, esse profissional jurídico promoverá a interpretação das fontes do Direito aos fatos apresentados, ato de extrema complexidade, já que, a depender do caso, caberá a ele, unicamente, decidir por eventual restrição de um dos maiores bens fundamentais do ser humano: a liberdade.
Desde o século XIX, o Inquérito Policial é o maior instrumento de trabalho do Delegado de Polícia e vem disciplinado entre os artigos 4º e 23 do Código de Processo Penal.
A finalidade do Inquérito Policial é apurar se a notitia criminis possui fundamento. Para isso deve haver uma reconstrução do fato noticiado, a partir da sua documentação neste processo preambular da ação judicial, com o objetivo de avaliar se houve ou não infração penal e identificar o(s) seu(s) provável(is) autor(es).
O fim almejado pelo Inquérito Policial não é tão somente servir como justa causa para eventual ação penal pois, através dessa fase preambular, podemos descobrir que não houve infração penal, por atipicidade ou ilicitude da conduta, por exemplo, e/ou esclarecer que não foi determinado suspeito quem praticou o fato criminoso, sendo tudo submetido à apreciação do Poder Judiciário, o qual, por sua vez, oferece vistas às eventuais partes interessadas (Ministério Público ou Querelante).
A Polícia Judiciária não trabalha única e exclusivamente para o Ministério Público, mas sim para o Estado, na busca de apurar se a notitia criminis possui veracidade quanto à materialidade e autoria narrada, demonstrando seu importante valor para a promoção da Justiça Penal.
Assim, o Delegado de Polícia, ao tomar conhecimento da notícia da infração penal (notitia criminis), analisará se há indícios de materialidade, sendo que, em caso positivo, estando o autor em cenário de flagrante delito, excetuando-se infração de menor potencial ofensivo e praticada por adolescente infrator, inaugurará o inquérito policial através do auto de prisão em flagrante e, não havendo situação flagrancial, instaurará o inquérito policial por meio de portaria.
De qualquer forma, o Delegado de Polícia deve avaliar a situação apresentada e adequá-la à norma jurídica, seja para liberá-lo ou ratificar a sua prisão, atuando de acordo com o Estado Democrático de Direito na preservação da Justiça Penal, sendo que, para tanto, irá aferir, inicialmente, a existência da infração penal, ou seja, a presença ou não de seus elementos.
A infração penal, apesar de ser una, como melhor caracterização, se revela com o seu estudo analítico ou estratificado, por meio dos seus requisitos ou características, os quais, segundo a teoria tripartida, na visão finalista, compreende em Fato Típico, Antijurídico e Culpável.
Cada substrato desse estudo estratificado da infração penal possui seus subelementos, teorias, causas excludentes, dentre outros temas importantes para sua caracterização, tudo devendo ser avaliado pelo Delegado de Polícia diante de uma situação fática.
Importante ressaltar que, em que pese posição contrária, verificada qualquer das hipóteses de excludentes de Tipicidade (ausência de conduta, desvalor da conduta, etc), de Ilicitude (estado de necessidade, legítima defesa, etc) e de Culpabilidade (inimputabilidade, inexigibilidade de conduta diversa, etc), o Delegado de Polícia deve afastar eventual infração penal indicada no caso apresentado a exame, sob pena de retringir a liberdade, direito fundamental do ser humano, de forma ilegal, afetando a Justiça Penal e, consequentemente, o Estado Democrático de Direito.
Nota-se que, com a ruptura da ditadura militar para a democracia, lastreada com a edição de uma nova constituição, obrigou operadores do direito a interpretar o ordenamento jurídico de uma nova forma, tendo como eixo fundamental os direitos individuais do cidadão, afastando de todo gênero abusos, até então cotidianos, praticados por agentes públicos.
Nessa esteira, todos os órgãos estatais foram compelidos a atuar e, acima de tudo, buscar legitimação para as suas ações através do respeito às normas constitucionais e aos direitos fundamentais do cidadão, não sendo diferente para a Polícia Judiciária, órgão essencial à Justiça Penal e ao Estado Democrático de Direito, visto ser o primeiro órgão com competência para tecer uma decisão jurídica.
Desse modo, o Delegado de Polícia, na qualidade de dirigente da Polícia Judiciária e agente público tecnicamente capacitado e com competência legal para, narrado os fatos, atuar hermeneuticamente sobre os elementos da infração penal, a fim de decidir acerca de um dos maiores bens do cidadão, a liberdade, é o primeiro a promover, incontinenti, a Justiça Penal, quando emana decisão acerca do futuro da pessoa apresentada como sendo a responsável por eventual infração penal.
A análise jurídica dos fatos não pode ficar a mercê de qualquer profissional da segurança pública e, muito menos, aguardar as ilusórias 24 horas para decisão de um Juiz de Direito pois, durante esse período, em um Estado Democrático de Direito, também se deve primar pelos direitos e garantias fundamentais do ser humano.
Autor: Nilton César Boscaro.
Delegado de Polícia Civil do Estado do Acre.
Diretor do Departamento de Polícia da Capital e do Interior (DPCI) do Acre.